Por: Cleber Facchi & Bruno Leonel
De um lado, um catálogo cada vez maior de obras focadas no Heavy Metal, morada de Metallica, Iron Maiden, Dio e tantos outros artistas da época. No outro oposto, a fluorecência do pop, impulsionado pelo trabalho de Madonna e Cyndi Lauper. Dentro desse ambiente exageradamente sombrio e colorido em extremos, uma seleção de obras pavimentaram a composição da cena alternativa, apontando para diferentes gêneros. O punk e o hardcore lentamente abandonavam o teor anárquico da cena britânica, abrigando a chegada de uma nova seleção de artistas, caso de Minor Threat. A New Wave, por sua vez, encontrava nas mãos do The Police e Talking Heads um novo significado, deixando para grupos como The Fall, R.E.M. e Swans um princípio de transformação para o rock. Em mais um especial da nossa série de textos focados em resgatas clássicos de algum ano específico, selecionamos 10 Discos de 1983. Trabalhos que mesmo hoje mantém a mesma carga de influência e novidade, quanto no período em que foram apresentados.
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Brian Eno
Apollo: Atmospheres and Soundtracks (Astralwerks)
Desenvolvido como uma trilha sonora para o documentário For All Mankind (1989), do diretor Al Reinert e centrado na missão espacial Apollo, Apollo: Atmospheres and Soundtracks acabou expandindo a obra de Brian Eno para além do cenário inicialmente proposto. Aproveitado em películas como 28 Days Later, Trainspotting e Drive, o trabalho desenvolvido por Eno, seu irmão Roger e Daniel Lanois demonstra toda a sutileza do músico britânico em desenvolver peças atmosféricas e de natureza introspectiva. Ainda que cada parcela do disco represente uma manifestação específica do trabalho promovido pelo músico – seguindo o que foi apresentado na obra-prima Ambient 1: Music for Airports (1978) -, cada faixa lentamente alicerça o terreno para um dos capítulos mais coesos da trajetória do ex-Roxy Music. São músicas tecnicamente mais curtas, de até três ou quatro minutos, mas que não distanciam a capacidade de Eno em amortecer o ouvinte dentro de um plano totalmente subjetivo, cuidadoso por excelência. Um exercício simples de sintetizadores e guitarras quase silenciosas, mas que crescem com maestria dentro do efeito ora melancólico, ora sombrio que o álbum procura revelar. Comerciais de televisão, samples, jogos de vídeo game e até desenhos, Apollo é um rastro quase imperceptível, mas expressivo de Brian Eno dentro do mundo pop. CF
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Minor Threat
Out of Step (Dischord)
Apenas um disco, e o Minor Threat deixaria um dos legados mais importantes para a história do Punk/Hardcore. Primeira grande banda de Ian MacKaye – pai do Embrace e Fugazi -, o grupo norte-americano fez da curta existência e do álbum Out of Step um princípio para a consolidação de uma série de elementos que viriam a direcionar o gênero pelos anos seguintes. Desenvolvido em cima de um propósito menos anárquico e até reflexivo em relação ao que guiava a produção britânica, o trabalho fragmentou a desconstrução do mundo, proposta pelo Sex Pistols, em prol de um olhar político, empático e contestador em relação a sociedade. Base para a construção do Straight Edge – misto de estilo de vida com vertente criativa dentro do Hardcore -, o álbum é, antes de tudo, a construção de uma série de materializações líricas e sonoras para o estilo. De densidade abrigada nos versos de Betray ao esforço efêmero da canção-título, cada faixa do trabalho parece antecipar uma série de interferências sonoras e conceituais que anos mais tarde seriam reaproveitadas por uma série de outras bandas. Pouco mais de 21 minutos em que cada verso, nota ou som reverbera nítido significado. CF
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New Order
Power, Corruption & Lies (Factory)
Se você fosse jovem em 1983, provavelmente teria dançado ao som de Power, Corruption & Lies. Segundo registro em estúdio do New Order, o álbum suavemente ameniza a relação entre o post-punk (herança clara do Joy Division) e a eletrônica, marca que viria a caracterizar com acerto toda a atuação do grupo em poucos anos. Impulsionado pelo jogo rápido das guitarras de Bernard Sumner e a bateria de Stephen Morris, o trabalho abre espaço para que uma frente bem empregada de sintetizadores se instalem confortavelmente pela obra. Vozes, sons e harmonias sintéticas, tudo parece trabalhado em um estágio de compreensão plena, como se as bases em Movement (1981) fossem cuidadosamente ampliadas. Dividido entre canções de detalhamento dançante (Age of Consent) e composições de forte representação climática (We All Stand), o álbum traz em cada música um exercício específico de seus integrantes. Conceitualmente amplo, o disco abriga desde referências ao Kraftwerk – com Your Silent Face, uma versão acelerada de Trans-Europe Express – até manifestações literárias – caso de Ultraviolence, termo cunhado por Anthony Burgess no livro Laranja Mecânica. CF
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R.E.M.
Murmur (I.R.S.)
Poucos registros de estreia carregam tamanho acerto e concisão quanto Murmur, obra que apresentou o grupo norte-americano R.E.M. Ainda que Chronic Town EP, de 1982, já fosse o suficiente para alertar os ouvintes sobre a proposta do quarteto de Atlanta, é ao mergulhar no ambiente cinza do debut que Michael Stipe e os parceiros deixam fluir toda a capacidade da banda. Entrelaçando versos de lirismo tímido/obscuro, com emanações instrumentais centradas em diversos aspectos da música – indo do Country ao folk -, o disco atravessa uma seleção de canções que parecem apostar em um resultado completamente opositivo ao que ocupava a produção da época. Enquanto a New Wave derramava doses colossais de sintetizadores plásticos, Michael Jackson ainda reinava com o catálogo pop de Thriller (1982), faixas como Pilgrimage, Talk About the Passion e Perfect Circle pareciam delimitadas em um terreno soturno, próprio da banda e distantes de tudo que parecia comercial. Curioso observar que o disco não custou a impressionar o grande público, com os ouvintes elegendo Radio Free Europe como uma das canções mais marcantes do período. Princípio para o rock alternativo que cresceria anos mais tarde, Murmur é o alicerce para a melancolia de Document (1987), Automatic for the People (1992) e qualquer outra obra que a banda ainda viria a apresentar.CF
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Swans
Filth (Neutral)
Considerado como uma natural evolução do trabalho que a banda apresentou no EP de estreia, o registro trouxe no vocalista Michael Gira e no baterista Jonathan Kane os únicos sobreviventes da formação original da banda. Filth é notável por apresentar um som claustrofóbico, pesado e lento, carregando nos experimentos um princípio para a essência do projeto. Parte desse resultado veio da nova formação do grupo, que passou a contar com dois bateristas. O disco traz um amálgama de ruídos dissonantes e microfonias, permeando cada uma de suas nove faixas em um cenário desolador. Os timbres metálicos do baixo, aliados a vocais raivosos e à batidas repetidas dão um clima quase mecânico às canções. É o que se ouve na agitada Big strong boss e no esporro quase de Weakling. Filth tem uma série de elementos muito característicos de outras bandas da cena No-Wave, bastante em alta na Nova York do começo dos anos 1980. Com o passar dos anos o álbum passou a ter melhor reconhecimento por parte do público e crítica, sendo considerado um princípio/complemento para gêneros como Industrial e até o Noise. BL
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Talking Heads
Speaking In Tongues (Sire)
Fosse a grandeza de Remain in Light (1980) ou apenas cansaço depois de quatro lançamentos em sequência, para a construção de Speaking In Tongues o Talking Heads precisou de um pouco mais de tempo em estúdio. Quinto registro em estúdio do quarteto nova-iorquino, o álbum pode não superar a genialidade e o ritmo quente do disco que o antecede, mas também está longe de parecer um erro. Carregado pela mesma energia cativante do registro apresentado três anos antes, o álbum vai da canção de abertura, Burning Down the House, até a delicada faixa de encerramento, This Must Be the Place (Naive Melody), em um esforço de puro aproveitamento melódico. Com guitarras, sintetizadores e vozes alinhadas cuidadosamente, o trabalho se manifesta como mais um resultado da maturidade exposta por David Byrne, que ao mergulhar em ritmos latinos, Funk e reformulações da New Wave, assume como o álbum mais um capítulo criativo na história da banda. O disco ainda exerceria um papel importante para a trajetória do grupo, abastecendo parte expressiva do repertório montado para o clássico álbum ao vivo Stop Making Sense, lançado no ano seguinte. CF
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The Fall
Perverted by Language (Rough Trade)
Poucos artistas estiveram tão inspirados ao longo da década de 1980 quanto Mark E. Smith. Mente criativa aos comandos do The Fall, o músico britânico fez das dez obras em estúdio lançadas durante o período um dos capítulos mais estranhos (e naturalmente criativos) do pós-punk inglês. Autor de um universo instável e distinto a cada nova obra, Smith trouxe no sexto álbum da banda, Perverted by Language, um efeito de maturidade em relação ao que Grotesque (1980) e Hex Enduction Hour (1982) já haviam acrescentado anteriormente. Ainda que mergulhado na mesma provocação apresentada desde o fim da década de 1970, o músico encontra com o registro um efeito distinto em relação aos primeiros álbuns: as melodias. Por mais que o território proposto pelo compositor venha acompanhado pela sombra, desespero ou simples versos cotidianos, é no teor “acessível” de músicas como Neighbourhood of Infinity e Smile que ele cresce, antecipando uma série de conceitos que viriam a alimentar o clássico This Nation’s Saving Grace (1985) em poucos anos. CF
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The Police
Synchronicity (A&M)
Unindo a urgência do punk com a economia de ritmos como reggae e ska, o Police sempre teve uma trajetória ímpar no rock inglês, construindo uma discografia emblemática sem nunca estar associado diretamente à algum movimento ou cena. Em um contexto no qual tendências apareciam e desapareciam em sequência no Reino Unido, o trio estabeleceu um espaço próprio, com diversas canções memoráveis. Synchronicity foi o ápice disso. Com reconhecimento devidamente notado pelo público e crítica, a banca fez do trabalho um momento de mudança em sua trajetória, tanto sonoramente, quanto em relação ao conteúdo lírico. Há maior uso de sintetizadores e metais (Wrapped Around Your Finger) além de uso de referências musicais específicas do oriente médio – como em Mother. O disco ainda contabiliza Every breath you take, uma das faixas mais conhecida da banda. Muitos consideram a produção do registro uma das mais assertivas já feitas em um disco do trio, com texturas em camadas e arranjos tão sofisticados para a época quanto hoje. Durante o processo de gravação conflitos internos pioraram cada vez mais a situação do grupo, que interrompeu as atividades logo em seguida. BL
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Tom Waits
Swordfishtrombones (Island)
Depois de ter acumulado experiência e uma sequência de obras bem recebidas ao longo da década de 1970, Tom Waits parecia pronto para se reinventar. Nada de caminhar pelas mesmas ruas solitárias de The Heart of Saturday Night (1974) e Blue Valentine (1978), obras que mediaram de forma assertiva a relação entre o Blues, o Folk e Jazz, com Swordfishtrombones, todas as percepções musicais do norte-americano buscavam pelo experimento. Sustentado por arranjos instáveis, vozes divididas entre o ameno e o ruidoso, além de uma sequência de versos ainda mais dolorosos do que aqueles firmados nos trabalhos passados, Waits deu inicio a trilogia que o tornaria conhecido mundialmente. Primeiro capítulo da saga – que ainda renderia Rain Dogs (1985) e Frank’s Wild Years (1987) -, o álbum de 1983 é um típico exemplar de descoberta, como se Waits fosse aos poucos testando arranjos, sons e diferentes espaços para a própria voz. Essencialmente melancólico e banhado por orquestrações pouco convencionais, o disco autoriza o crescimento de canções clássicas do músico, esforço que In the Neighborhood, Down, Down, Down e a própria faixa-título amenizam com confissões e solidão. CF
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Violent Femmes
Violent Femmes (Rough Trade)
Disco que apresentou o folk-punk, alternativo e minimalista do quinteto Violent Femmes ao mundo, o debut de 1983 é ainda hoje uma obra carregada de acerto e boas melodias. Por trás dos arranjos simples e harmonias tecnicamente fáceis, cada som (como os sutis vocais, teclados e xilofones) parece devidamente planejado com um esmero tão grande, que é quase impossível imaginar tantos sons posicionados de outra forma. Tudo parece devidamente pensado de forma a pontuar as canções do jeito que ecoam no registro, trabalho que traz na produção assinada por Mark Van Hecke um esmero raro. Embora algumas ideias soem ainda inseguras e sem uma devida “lapidação” de estúdio, o disco capta em cada música uma aura criativa nítida, efeito raro em uma obra de estreia. Três décadas após seu lançamento, é possível reconhecer no álbum o embrião para uma serie de outros artistas e bandas recentes. Herdeiros como Mumford & Sons, Beck e Cake que entre um trabalho e outro esbarram em conceitos muito próximos daqueles aplicados na construção do álbum. BL
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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.
Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.