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Ano: 2021

Selo: Arraial

Gênero: MPB, Samba, Jazz

Para quem gosta de: Moreno Veloso e Marcos Valle

Ouça: Vinho Velho, Confusão e Margem do Céu

8.0
8.0

Domenico Lancellotti: “Raio”

Ano: 2021

Selo: Arraial

Gênero: MPB, Samba, Jazz

Para quem gosta de: Moreno Veloso e Marcos Valle

Ouça: Vinho Velho, Confusão e Margem do Céu

/ Por: Cleber Facchi 13/04/2021

Raio (2021, Arraial), como tudo aquilo que Domenico Lancellotti tem produzido ao longo da última década, é um trabalho feito para ser absorvido aos poucos, sem pressa. Com produção dividida entre Petrópolis, no Rio de Janeiro, e Lisboa, capital de Portugal, onde reside desde 2019, o sucessor de Serra dos Órgãos (2017) mostra um artista contido, mas não menos detalhista e inventivo. São incontáveis camadas instrumentais, melodias nostálgicas que passeiam por diferentes campos da música brasileira e instantes de profunda entrega sentimental. Um precioso exercício criativo onde cada fragmento assume uma função específica, riqueza que se percebe tão logo o registro tem início, na construção labiríntica de Vai a Serpente, mas que acaba se refletindo até a derradeira Newspaper.

É um registro sobre transformação permanente“, resume Lancellotti no texto de apresentação do álbum. Canções que se espalham em uma medida própria de tempo, sussurrando segredos, ruídos e porções instrumentais que pouco a pouco movimentam o disco. Não por acaso, cada composição serve de passagem para a faixa seguinte. Entrelaces rítmicos e melódicos que garantem ao trabalho uma sensação de obra viva, como um bloco imenso que se divide em porções específicas, porém, nunca isoladas. Exemplo disso acontece logo nos minutos iniciais, quando sintetizadores cósmicos e a percussão rastejante Vai a Serpente desemboca no minimalismo de Snake Way, música completa pelos sopros de Joana Queiroz e a voz doce de Nina Miranda, também parceira em Mushroom Room.

Partindo dessa movimentação contida, como ondas que se chocam lentamente, Lancellotti entrega ao público uma obra que exige ser desvendada. São canções essencialmente curtas, porém, marcadas pela criativa sobreposição dos elementos, entalhes percussivos e melodias que ora apontam para a psicodelia jazzística de João Donato, ora fazem lembrar do som refrescantes de Marcos Valle. Síntese clara desse direcionamento acaba se refletindo na delirante Margem do Céu, música que ganha forma em meio a camadas de teclados e guitarras pontuais, como um complemento aos versos cuidadosamente detalhados pelo compositor fluminense. “Toco a margem do céu / Dou com a cara no azul“, canta em meio a versos cíclicos, como um mantra, cercando e confortando o ouvinte.

Essa mesma abordagem sutil acaba se refletindo em outros momentos ao longo do trabalho. São canções como Confusão (“As ondas vêm / As ondas vão / Mas atenção / Não vão levar / A minha paz“) e Hordas (“Abrir saliente um buraco no paredão / Da gente que quer a minha castração / Na terra abunda um pus de cor marrom“), em que Lancellotti passeia em meio a paisagens descritivas e temas existencialistas, como uma parcial fuga da urgência explícita em obras como Sincerely Hot (2003) e Cine Privê (2011). Mesmo as canções instrumentais que recheiam o disco, caso de Tema Pro Zé e a ritualística Lanço Minha Flecha contribuem para esse direcionamento. Experimentos pontuais que externalizam, ainda que de forma comedida, parte das inquietações e sentimentos do artista.

Claro que essa busca por uma sonoridade contemplativa não interfere na produção de faixas mais acessíveis. É o caso de Vinho Velho, música que evoca o pop agridoce de Gonzaguinha, Guilherme Arantes e outros personagens de destaque da década de 1980, porém, ainda íntima do refinamento típico de Lancellotti. “Junto com você / Tudo Por Você / Canto Pra Você“, confessa. São momentos de maior vulnerabilidade, entrega acentuada pelo reducionismo dos arranjos e melodias que lembram o trabalho do artista em faixas como Os Pinguinhos e Su di te. A própria Margem do Céu, mesmo imersa em temas lisérgicos e momentos de maior delírio, parece pensada para grudar na cabeça do ouvinte logo em uma primeira audição, efeito direto da letra que encolhe e cresce a todo instante.

Todo esse cuidado no processo de composição da obra garante ao público um registro essencialmente equilibrado. É como se Lancellotti e seus diferentes colaboradores, caso de Ricardo Dias Gomes, Pedro Sá, Bem Gil e Bruno Di Lullo, soubessem exatamente que direção seguir dentro de estúdio. Canções que seguem por uma trilha intimista quando próximas dos antigos trabalhos do músico, porém, não menos primorosa. Da construção dos arranjos ao uso instrumental e rítmico das vozes, perceba como diferentes camadas se escondem por entre as brechas de cada composição. São fragmentos que surgem e desaparecem de forma sempre minuciosa, proposta que garante ao álbum uma profundidade naturalmente maior do que uma rápida passagem pelo disco talvez pareça indicar.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.