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Ano: 2021

Selo: Biscoito Fino

Gênero: MPB

Para quem gosta de: Adriana Calcanhotto e Gal Costa

Ouça: Prudência e A Flor Encarnada

8.5
8.5

Maria Bethânia: “Noturno”

Ano: 2021

Selo: Biscoito Fino

Gênero: MPB

Para quem gosta de: Adriana Calcanhotto e Gal Costa

Ouça: Prudência e A Flor Encarnada

/ Por: Cleber Facchi 09/08/2021

Em um cenário consumido pelas trevas do obscurantismo, medo e retrocesso, a voz de Maria Bethânia brilha forte. Dois anos após o lançamento de Mangueira: A menina dos meus olhos (2019), registro em que presta reverência à Estação Primeira de Mangueira, da qual foi tema do enredo da agremiação, a cantora e compositora baiana estabelece nas canções do reducionista Noturno (2021, Biscoito Fino), mais recente trabalho de estúdio, um precioso ponto de ruptura. São fragmentos sentimentais e poéticos que passeiam em meio a versos descritivos, arranjos econômicos e momentos de maior vulnerabilidade, como um olhar melancólico sobre a atual situação política do Brasil, porém, intimamente conectado às emoções e temas românticos interpretados pela artista.

Não gosto mais de falar do Brasil. Tenho vontade de chorar”, respondeu em entrevista ao jornalista Leonardo Lichote, do El País, durante a promoção da live que realizou no início deste ano. É partindo justamente desse sentimento de angústia que Bethânia, acompanhada pela direção musical e arranjos de Letieres Leite e produção musical de Jorge Helder, orienta a experiência do ouvinte durante toda a execução do trabalho. “Quantos estão pelas mesas / Bebendo tristezas / Querendo ocultar / O que se afoga no copo / Renasce na alma / Desponta no olhar“, canta na introdutória Bar da Noite, música resgatada do fino repertório de Nora Ney (1922 – 2003), mas que estabelece na melancolia dos versos uma síntese conceitual do cenário pandêmico e triste temática que consome Noturno.

A diferença em relação a outros trabalhos apresentados pela artista, sempre marcados pela forte teatralidade, está na forma como Bethânia utiliza de uma abordagem sóbria e direta durante boa parte da obra. Exemplo disso acontece na narrativa crua de Dois de Junho. Composta por Adriana Calcanhotto, a canção revive os detalhes da morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, após cair do 9º andar de um prédio de luxo no centro de Recife. “Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar / O destino de Ícaro / O sangue de preto / As asas de ar“, detalha em meio a versos que discutem o peso do racismo e a negligência envolvendo o caso, tratamento reforçado pela guitarra densa de Pedro Sá, maior e mais sufocante a cada novo movimento.

Claro que essa sutil mudança de estrutura não interfere na produção de faixas deliciosamente dramáticas, íntimas dos antigos trabalhos de Bethânia. É o caso da já conhecida A Flor Encarnada. Também composta por Calcanhotto e completa pelos pianos de Zé Manoel, a canção se espalha em meio a versos ora declamados, ora potencializados pelo canto entristecido da artista baiana. “O amor não gosta mais de mim / Nunca mais vi seu clarão“, desaba. O mesmo lirismo angustiado acaba se refletindo minutos à frente, em Prudência, um bolero confessional de Tim Bernardes, como uma interpretação ampliada tudo aquilo que o músico paulistano havia testado no também doloroso Recomeçar (2017). “As paixões que me descontrolaram / São as que fizeram eu ser como sou“, detalha.

Dos poucos momentos em que perverte essa base acinzentada, Bethânia entrega ao público algumas das canções mais preciosas do disco. Perfeita representação desse resultado acontece em Cria da Comunidade. Composta por Xande de Pilares, com quem divide a composição, a faixa de essência ensolarada não apenas se distancia do restante da obra, como nasce como um respiro necessário, rompendo com o forte aspecto monotemático que tende a pressionar o ouvinte. Esse mesmo tratamento, porém, partindo de outra abordagem criativa, acontece em Luminosidade, música que evoca a essência bucólica de registros como Brasileirinho (2003) e ainda abre passagem para o poema Uma Pequena Luz, criação de Jorge Sena que pontua o trabalho com fino toque de esperança.

Obra de contrastes que vão do lirismo agridoce ao tratamento dado aos arranjos, Noturno nasce como um documento minucioso sobre o período em que vivemos, porém, parece sobreviver para além dele. Entre memórias, confissões românticas e letras que mergulham em diferentes cenários e personagens, cada fragmento do disco parece pensado para dialogar com o ouvinte, mesmo que de forma dolorosa. São canções de essência reducionista, sempre sensíveis, mas que parecem maiores e mais complexas a cada nova audição, tratamento que muito se assemelha ao material entregue no econômico Oásis de Bethânia (2012) e outros registros dotadas de uma proposta bastante similar. É como se Letieres Leite, parceiro durante toda execução do álbum, despisse o trabalho de possíveis excessos, potencializando vozes e sentimentos cuidadosamente detalhados por Bethânia.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.