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Crítica

MIKE

: "Disco!"

Ano: 2021

Selo: 10k

Gênero: Hip-Hop, Rap, Experimental

Para quem gosta de: Earl Sweatshirt e Navy Blue

Ouça: Alarmed! e Aw (Zaza)

8.0
8.0

MIKE: “Disco!”

Ano: 2021

Selo: 10k

Gênero: Hip-Hop, Rap, Experimental

Para quem gosta de: Earl Sweatshirt e Navy Blue

Ouça: Alarmed! e Aw (Zaza)

/ Por: Cleber Facchi 09/07/2021

É impressionante como MIKE, mesmo imerso em um território bastante particular, tem feito de cada novo trabalho de estúdio um importante ponto de renovação dentro da própria carreira. Entre batidas tortas, ruídos e melodias empoeiradas, o artista, nascido Michael Jordan Bonema, brinca com as possibilidades enquanto versos marcados pelo forte caráter sentimental se aprofundam em conflitos existencialistas, medos e versos consumidos em essência pela dor. São recordações da infância tumultuada, com passagens por diferentes cidades, e permanente sensação de deslocamento, direcionamento que se reflete em alguns dos principais registros do rapper, como May God Bless Your Hustle (2017) e Tears of Joy (2019), mas que ganha ainda mais destaque com Disco! (2021, 10k).

Feito para ser absorvido aos poucos, como tudo aquilo que MIKE tem produzido desde os primeiros registros autorais, o sucessor de Weight of the World (2020), lançado há poucos meses, nasce como um produto do isolamento, inquietações e parte das experiências vividas pelo artista hoje residente em Nova Iorque. Canções que costuram passado e presente de forma sempre contemplativa e melancólica, como um passeio torto pela mente do próprio rapper. E isso fica bastante evidente logo na música de abertura, Evil Eye, em que utiliza de de memórias descritivas e recortes temporais, porém, sempre apontando para o presente, celebrando conquistas e a forte relação familiar. “É para minha mãe quando faço rap, quando rezo / Porque eu sei que ela vai rezar por mim“, rima.

Esse mesmo lirismo agridoce acaba se refletindo em diversos outos momentos ao longo da obra. São retalhos poéticos que se dividem entre a autoaceitação e permanente sufocamento vivido pelo artista, em luta contra a depressão desde a adolescência. “É difícil aceitar o amor como ele é ou como ele era / Quando o aceitava, era doentio / Quando não o aceitava, era difícil“, reflete na delicada Big Love, música que sintetiza parte das experiências, medos e tormentos que orientam a construção dos versos. É como se MIKE, pela primeira vez, fosse capaz de olhar para o próprio passado, e encontrar possíveis soluções para perguntas antes sem respostas. Um misto de aceitação e permanente busca por transformação pessoal, proposta que cresce à medida em que o registro avança.

Exemplo disso acontece em Leaders of Tomorrow, composição em que utiliza de um discurso esperançoso, porém, sempre marcado pela sobriedade dos temas. “Às vezes eu pensava em aceitar as perdas como um presente / Pois só a morte vai te mostrar como viver, certo?“, reflete. São músicas como Aww (Zaza) (“Muito desprezo, estou desmoronando / Eu sei que se eu morresse eles iriam abatê-lo“) e Babyvillain (In our Veins) (“Eu costumava rir para me desapontar / Tente esconder isso e me culpe“) em que utiliza de vivências reais como importante componente de diálogo com o público. Não por acaso, esse talvez seja o registro mais acessível já produzido pelo rapper, o que em nenhum momento distancia o ouvinte da atmosfera delirante e quebras incorporadas aos antigos trabalhos.

Mais do que um registro marcado pela força e evidente amadurecimento dos versos, Disco! é um trabalho que encanta pela forma como MIKE parece testar criativamente os próprios limites como produtor. Enquanto utiliza de retalhos extraídos de diferentes campos da música negra, batidas irregulares, ruídos e vozes ocasionais tornam a experiência de ouvir a obra completamente imprevisível. E isso fica bastante evidente em músicas como At thirst sight by Assia, em que se distancia do uso das rimas para jogar com os instantes. São costuras instrumentais e rítmicas que talvez se perdessem nas mãos de outros artistas, mas que funcionam dentro do ambiente torto que tem sido incorporado pelo rapper, mais uma vez apresentado sob o pseudônimo de ​DJ Blackpower.

São justamente esses atravessamentos rítmicos e quebras conceituais que tornam a experiência de ouvir o trabalho tão satisfatória. É como se MIKE fosse de encontro ao mesmo território de outros produtores também regidos pela mesma versatilidade, como MF Doom e Madlib, duas de suas principais referências criativas, porém, preservando uma série de elementos soturnos e ambientações inexatas que tem sido exploradas desde os primeiros registros autorais, como Longest Day, Shortest Night (2016), quando tinha apenas 16 anos. Nesse sentido, o material apresentado em Disco! funciona como um precioso exercício de amadurecimento pessoal, lírico e estético, mas que em nenhum momento perde a jovialidade ou diminui capacidade do rapper em surpreender o ouvinte.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.