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Crítica

William Doyle

: "Great Spans of Muddy Time"

Ano: 2021

Selo: Tough Love Records

Gênero: Art Pop, Pop Progressivo

Para quem gosta de: Owen Pallett e Robert Wyatt

Ouça: And Everything Changed e Nothing at All

8.5
8.5

William Doyle: “Great Spans of Muddy Time”

Ano: 2021

Selo: Tough Love Records

Gênero: Art Pop, Pop Progressivo

Para quem gosta de: Owen Pallett e Robert Wyatt

Ouça: And Everything Changed e Nothing at All

/ Por: Cleber Facchi 29/03/2021

Great Spans of Muddy Time (2021, Tough Love Records) é um produto da catástrofe. Durante o processo de gravação do trabalho, o cantor e compositor William Doyle viu grande parte do registro se perder em um acidente que deu fim ao disco rígido do computador onde armazenava as composições. Com o material parcialmente salvo apenas em uma fita cassete, o músico inglês se viu forçado a remontar as peças da novo álbum de forma torta, rompendo com o habitual preciosismo explícito no processo de gravação de Total Strife Forever (2014) e Culture of Volume (2015), quando ainda se apresentava como East India Youth, e Your Wilderness Revisited (2019), registro que levou quase quatro anos até ser finalizado.

O resultado desse inusitado processo de composição está na entrega de uma obra essencialmente contida, mas não menos detalhista. Longe das habituais camadas de sintetizadores e temas eletrônicos que marcam a sequência de obras entregues pelo compositor ao longo da última década, Doyle se concentra na entrega de um material reducionista. São guitarras enevoadas, melodias tecidas com evidente sutileza e vozes que se projetam como um instrumento complementar, ocupando as pequenas brechas do registro. Instantes em que o artista parece encolher quando próximo de som psicodélico de canções como Millersdale e todo o fino repertório lançado como East India Youth, porém, cresce na forma como os sentimentos e versos ganham ainda mais destaque.

Para além do turbulento processo de composição do disco, Great Spans of Muddy Time é um trabalho regido pelas catástrofes emocionais de Doyle. São canções consumidas pela angústia, depressão e forte sensação de abandono vivida pelo músico nos últimos anos, conceito que dialoga diretamente com o título da obra, em português, algo como “grande período de tempos enlameados“. E isso se reflete com naturalidade em algumas das principais faixas do disco, como a dolorosa And Everything Changed (But I Feel Alright). “Conforme o tempo passava no leste / O amor parou de acontecer / E tudo mudou… Mas eu me sinto bem, eu acredito“, confessa em tom melancólico.

Essa mesma dor ecoa em outras faixas ao longo da obra. Do momento em que tem início, em I Need to Keep You in My Life (“Eu preciso manter você na minha vida / Para manter uma imagem sua em minha mente“), passando por músicas como Semi-bionic (“Então eu cantei para a vida / Esperando para acordar“) e Nothing at All (“Então eu não pude dizer o que queria dizer / A sensação e o sentimento / Foram enterrados sob grandes extensões de nada“), tudo gira em torno da experiências pessoais e conflitos vividos pelo cantor. São memórias entristecidas que se espalham em meio a delicadas camadas de sintetizadores, conceito que faz lembrar de obras como Before and After Science (1977), de Brian Eno, e Old Rottenhat (1985), de Robert Wyatt, esse último, confessa influência de Doyle.

Mesmo quando se distancia do uso das palavras, Doyle mantém firme a essência sorumbática que rege o disco. Exemplo disso acontece em Somewhere Totally Else, terceira faixa do álbum. São ambientações sujas e batidas calculadas que avançam em uma medida própria de tempo, cercando o ouvinte. A própria New Uncertainties, com pouco menos de dois minutos de duração, reflete o mesmo direcionamento conceitual, detalhando camadas sutis de guitarras e inserções tortas que evidenciam parte da essência do trabalho. São fragmentos instrumentais que servem de passagem para o estranho território criativo desbravado pelo músico, como pontos de conexão entre uma composição e outra, reforçando o caráter homogêneo que envolve cada uma das canções do artista.

Feito para ser absorvido aos poucos, Great Spans of Muddy Time preserva o que há de mais característico nas canções de Doyle, porém, estabelece na força dos sentimentos e experiências compartilhadas pelo compositor inglês um importante ponto de transformação na carreira do artista. São registros que alternam entre momentos de maior experimentação e faixas deliciosamente acessíveis, estrutura que passa pela obra de veteranos como Talk Talk e The Blue Nile, dialoga com as criações de contemporâneos como Owen Pallett, mas que a todo momento regressa a um ambiente próprio do músico, como um delicado exercício de exposição emocional que parece ainda mais sensível e doloroso a cada nova audição.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.