O canto sombrio de Bristol

/ Por: Cleber Facchi 25/05/2011

Por: Cleber Facchi

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“Esteja alerta para a regra dos três
O que você dá, retornará para você
Essa lição você tem que aprender
Você só ganha o que você merece”

Os versos acima, repletos de certo misticismo e uma quase reinterpretação do que seria a ideia do Karma vem de Silence, faixa de abertura do álbum Third (2008) e terceiro disco de estúdio da banda inglesa Portishead. O conjunto de palavras marcava um retorno da tríade formada nos primórdios dos anos 90, tendo seus integrantes Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley há seis anos afastados do projeto, em decorrência de um hiato, onde cada membro buscou o desenvolvimento de seus trabalhos solo e um respiro do que parecia ser um movimento que nasceu e morreu na mesma década. Antes, porém, do consagrado retorno o trio daria vida a dois discos essências para a compreensão do que fora o Trip-Hop e a música da década de 1990.

Enquanto o mundo seguia pela crescente eletrônica estabelecida pela House Music, os ritmos de Eurodisco e os excessos da pista de dança, sem que houvesse de fato uma preocupacão ideológica, um grupo de músicos e produtores estabelecidos na cidade de Bristol, ao sudoeste da Inglaterra resolveram abandonar essa “demasia” em prol de um som mais intimista e introspectivo, deixando de lado a ideia do “upbeat” para trabalhar com batidas mais lentas, composições detalhistas e um casamento entre uma instrumentação orgânica e eletrônica. Nascia assim o Trip-Hop no final dos anos 80 (embora tal nomenclatura só viesse na década seguinte através da imprensa britânica), ritmo que posteriormente uniria Gibbons e Barrow através de uma conversa descompromissada em uma fila de desempregados.

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Enquanto a primeira já se apresentava regularmente em bares e casas de shows pela cidade, além de  contribuir com seus vocais através de outros projetos como o conterrâneo Massive Attack, o segundo estava ligado à produção musical, embora ainda não tivesse dado vida a nada relevante até o momento. Após um convite ao amigo Utley, guitarrista em uma banda de jazz, o trio partiu para a criação de um curta metragem denominado To Kill a Dead Man (1994), inspirado em filmes Noir, onde além de dirigir e atuar, desenvolveram a trilha sonora do curta, posteriormente transformada em EP e servindo como uma porta de entrada do músicos para o meio musical. Entregue à gravadora Go! Discs, o pequeno disco garantiria ao trio a assinatura de um contrato para que o primeiro disco do projeto fosse lançado. Surgia de fato o Portishead (nome inspirado na cidade natal de Barrow) e seu primeiro disco, o clássico Dummy (1994).

Se em 1991, através do álbum Blue Line, Robert Del Naja (“3D”) e Grant Marshall (“Daddy G”) davam indícios concisos de que um novo movimento estava se estabelecendo no cenário musical britânico, então Dummy seria o ponto final nessa história (ou a frase de centro), revelando ao mundo o que realmente era exposto na até então pouco conhecida Bristol. Dando vida à um clima sombrio, perpassado pela melancolia, com toques de sedução e abandono, o álbum carregava uma proposta completamente inversa ao que era exposto nas pistas e nas paradas musicais daquele momento. Trançando elementos do jazz, hip-hop, dub, ambient music e soul, o disco formaliza um ambiente obscuro, tomado pelo contraste entre luz e sombra, onde a voz suave de Gibbons, hora carregada de efeitos, hora límpida e transparente acaba por servir como elemento de guia, levando o ouvinte cada vez mais a fundo nesse mesmo universo.

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Embora oposto ao que estava em voga no presente momento, o debut dos ingleses acabou repercutindo de forma positiva, tanto em território europeu quanto nos Estados Unidos, onde mesmo antes de fazerem sua primeira excursão em terras americanas o trio já havia vendido mais de 100 mil cópias de seu trabalho, um feito deveras raro, mesmo em tempos onde a indústria fonográfica que vivia em seu ápice através da venda de CDs. O sucesso do trabalho, entretanto, não era duvidoso, afinal, o conjunto de composições desenvolvidas pela banda – sempre ressaltando letras sofridas e uma instrumentação que funcionava de apoio aos versos – fisgavam o ouvinte de forma certeira. Através de canções como Numb, cruzando scratches com uma pendência ao reggae, Glory Box, uma das músicas mais sexys (e melancólicas) das últimas décadas ou com a confessional Sour Times, tudo culminava para o sucesso do trabalho.

A boa recepção do disco e uma série de apresentações divididas entre a Europa e a América tornavam mais do que evidente a força desenvolvida pelo trio em seus curtos anos de atuação. Para superar o sucesso alcançado em sua estreia, os britânicos ficaram em reclusão por quase dois anos, espaço de tempo que romperiam apenas em 1997 com a chegada de seu segundo disco, um trabalho que, embora seguisse por uma via  muito semelhante àquela desenvolvida através do primeiro álbum trazia visíveis inovações, com o pequeno grupo se afundando de vez em camadas de sons sintetizados, loopings sombrios e cargas e mais cargas de efeitos eletrônicos.

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Se ao lançarem seu primeiro disco o Portishead dava vida a um som singular, que mesmo tomado pela inserção de batidas eletrônicas e sintetizadores pontuais transmitiam certo toque orgânico (através de instrumentos variados e da voz suave de Beth Gibbons), com o segundo disco tudo se inverte, com a tríade movimentando o que parecia uma pequena epopéia futurista, repleta de elementos inorgânicos, sons organizados de forma quase matemática, mas ainda assim tão belo, sentimental e intenso quanto o que fora desenvolvido na estreia. Carregado por ruídos sintomáticos, uma bateria abafada e vocais recheados de modulações, o autointitulado segundo disco não apenas inovava, como definia de vez o grupo como um dos maiores de sua geração, transportando seus três integrantes para dentro das paradas de sucesso e das principais publicações musicais (ou não) ao redor do globo.

Iniciando em meio ao uso de sons sincopados e a densidade ruidosa de Cowboys, o álbum prossegue com os mesmos lamentos e as angústias exaltadas por Gibbons. Embora o mesmo elemento negativista do passado já não existisse mais, a ausência e os desencontros parecem ser o mote do novo trabalho. Em All Mine (faixa que arremessaria o grupo para o topo das paradas de sucesso em todo Reino Unido), a vocalista exala suas paixões e a incompatibilidade de encontro entre ela e o amado, onde a trilha sonora que a acompanha despeja uma série de sons que vão da soul music e funk aos ritmos jamaicanos em uma tonalidade que transita pelo alegre e o triste ao mesmo tempo.

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Assim como no trabalho de estreia, o disco de 97 chega carregado por uma série de hits, em que as batidas e o clima comportado desenvolto pelo trio agora se preenchem por uma leve predisposição ao pop. Dentre as grandes composições do álbum surge a delicada Only You, um dos mais belos trabalhos já elaborados pelo Portishead. Valendo-se de samples variados e uma quebra constante de ritmos, a faixa permite que sua vocalista deslize ao longo da composição derramando versos amorosos, fazendo confissões e misturando-se em meio aos sons intimistas que vão se apresentando. Para Over, o trio se afasta momentaneamente da temática sintética do trabalho, dando formas a algo que os aproxima visivelmente dos primeiros trabalhos da Björk, sem contar no sotaque carregado de Guibbons, que dá um charme todo especial à canção.

A boa repercussão do álbum daria ao trio a possibilidade de transpor suas composições para um registro ao vivo, gravado em 1998 no Roseland Ballroom, uma das casas de shows mais reconhecidas de Nova Iorque, por onde Paul McCartney, Madonna e Nirvana já haviam se apresentado. Além do trio, a apresentação vinha acompanhada da Orquestra Filarmônica de Nova Iorque, fazendo da apresentação um espetáculo único, posteriormente lançado em VHS e em 2002 transformado em DVD. O delicado repertório foi elaborado pinçando composições dos dois primeiros registros da banda, recebendo contornos totalmente renovados graças à inclusão da essencial participação da extensa orquestra. O Portishead mais uma vez se apresentava como um projeto consagrado, recebendo elogios rasgados da crítica e comandando um gigantesco exército de fãs espalhados pelos quatro cantos do planeta.

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Em 1999, após o fim da turnê do segundo disco, a banda resolveu finalmente descansar. Gibbons que há anos colaborava com o trabalho de outros artistas, trilhas sonoras e produções variadas resolveu adentrar de vez a carreira solo, onde ao lado do músico Rustin Man (nome criado por Paul Webb, baixista da banda de New Wave Talk Talk) deu vida em 2002 ao disco Out Of Season. Os outros dois integrantes seguiriam na produção dos mais variados artistas do cenário britânico, inclusive trabalhando em conjunto como produtores do álbum The Invisible Invasion (2005), disco do grupo inglês The Coral. Em 2005, porém, o grupo começava a dar sinais de que retornaria, lançando esporadicamente algumas novas composições ou versões feitas para faixas de outros artistas em sua página no MySpace. Entretanto, ainda levaria algum tempo até a banda retomar de vez suas atividades, algo que se concretizaria de fato em 2008 através do grandioso Third.

Havia certo receio no lançamento do terceiro álbum da banda. Do último disco de composições inéditas apresentadas pelo Portishead para o novo trabalho, um vazio de 11 anos se estabelecia, onde raros materiais inéditos foram apresentados e até boatos de que a banda havia acabado foram lançados. Também foram poucos os artistas que prosseguiram na temática do Trip-Hop com verdadeiro esforço, tudo que era lançado parecia ainda viver à sombra de tudo que o movimento fora nos anos 90, resultando em trabalhos que não inovavam e um público que parecia muito mais interessado nas novidades que brilhavam na música daquele período do que nos sons do passado. Contudo, a inteligência do trio de Bristol não deixaria a desejar, fazendo de seu terceiro álbum não apenas um excelente retorno, mas um dos trabalhos mais intensos lançados nos anos 2000.

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Toda a assertiva coleção de batidas, sons distintos, vozes reconfiguradas e teclados carregados de efeitos estavam lá, mais uma vez nos convidando para dentro do mundo sorumbático e sombreado que o trio soube como poucos construir. Embora parte dos olhares voltados ao disco viessem por conta da aura estabelecida pelo retorno da banda, quem se aventurou pela carga sentimental despejada pelo trio foi de encontro a um trabalho do mais puro brilhantismo. Em meio a faixas como The Rip, Hunter e Magic Doors, o Portishead transportava seus ouvintes para a mesma beleza criada na Bristol dos anos 90, onde os sons orgânicos caminhavam de mãos dadas com as conduções eletrônicas.

Madura, a voz de Gibbons dava um enorme salto em relação ao que era apresentado nos primeiros registros do trio, trazendo uma dose única de amadurecimento e soturnidade ao registro. A dupla Barrow e Utley mais uma vez destacava-se de forma surpreendente, nos prendendo através de seus synths e batidas quebrada e criando uma série de delírios auditivos que alcançam seu ápice nas faixas Plastic, We Carry On e (principalmente) Machine Gun. Nessa última, enquanto todo o álbum segue por uma via mais branda e repleto de sons atmosféricos, a dupla de produtores abre caminho para um som mais denso, quase agressivo, em que as batidas sujas de bateria eletrônica servem de condução para que Gibbons movimente seu vocal de maneira doce, se contrapondo aos opacos sons e sintéticos sons que vão se espalhando pela faixa.

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Assim como nos registros anteriores, Third contou com uma recepção unânime por parte da crítica, que acabou elencando o álbum como um dos melhores (se não o melhor) daquele ano, figurando lado a lado de álbuns como Dear Science (TV On The Radio), For Emma, Forever Ago (Bon Iver) ou a estreia do Fleet Foxes. O disco viria não apenas para dar um novo gás ao Trip-Hop – no ano seguinte ao lançamento, um número assombroso de novas bandas surgiram inspiradas pelo gênero – mas também serviria como uma espécie de aviso, uma comprovação da excelência do Portishead como um dos grandes nomes da música contemporânea, atravessando décadas e se mostrando tão influente quanto fora em sua estreia.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.