João Gilberto

/ Por: Cleber Facchi 24/07/2019

O ritmo torto, a voz anasalada e o minimalismo que mais revela do que parece ocultar. Ouvir as canções de João Gilberto (1931 – 2019) é como se perder em um território marcado pela incerteza dos elementos. A constante sensação de que tudo está encaixado em seu devido lugar, mas que algo, lá no fundo, parece capaz de incomodar. Ideias que apontam para os primórdios da nossa música, vide a herança cultural de Dorival Caymmi e Orlando Silva, mas que a todo momento estabelecem pequenos diálogos com a obra de estrangeiros como Duke Ellington e Chet Baker. Frações conceituais que não apenas serviriam de base para a consolidação da música popular brasileira, como apresentariam a bossa nova ao restante do mundo, influenciando diferentes gerações de artistas. Um extenso repertório agora organizado do pior para o melhor registro em mais uma edição do Cozinhando Discografias.


#11. The Best of Two Worlds
(1976, Columbia)

Embora bem-sucedida, em estúdio, a relação entre João Gilberto e Stan Getz nunca foi das melhores. Durante as gravações do clássico Getz/Gilberto (1964), não foram poucos os momentos em que o músico brasileiro entrou em atrito com saxofonista norte-americano, incomodado pela forma como o jazzista parecia corromper o perfeccionismo da própria obra. Não por acaso, quando foram convidados a se apresentar no Carnegie Hall, durante as gravações do material que viriam a resultar no ao vivo Getz/Gilberto #2 (1966), Getz assumiu parte das canções e Gilberto outra. Mesmo a tumultuada relação não impediu que, em 1976, a dupla se reencontra-se em estúdio para as gravações de The Best of Two Worlds. Claramente pensado como uma tentativa em replicar o sucesso da primeira parceira da dupla, o trabalho se espalha em meio a variações caricaturais que vão do jazz ao samba, abrindo passagem para a voz de Miúcha, como se assumisse o espaço antes reservado à Astrud Gilberto. Entre canções já conhecidas, como Águas de Março e Falsa Baiana, o destaque fica por conta de Lígia, criação de Tom Jobim, porém, interpretada pela primeira vez por João Gilberto.

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#10. João
(1991, Polygram)

Por vezes esquecido dentro da discografia de João Gilberto, João, primeiro álbum de estúdio do músico baiano em uma década, transita entre as orquestrações que marcam obras como Amoroso (1977), e o reducionismo explícito em alguns dos principais trabalhos do pai da bossa nova, caso de Chega de Saudade (1959) e o homônimo disco de 1973. Com produção assinada por Mayrton Bahia (Legião Urbana, Ivan Lins), o trabalho se revela ao público em pequenas doses, estabelecendo pequenas brechas criativas que se completam pelas orquestrações do norte-americano Clare Fischer – das quais Gilberto naturalmente acabou criticando. Marcado pelo resgate de clássicos, como Palpite Infeliz, de Noel Rosa, Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins, e You Do Something to Me, de Cole Porter, o trabalho ganha ainda mais destaque na versão para Sampa, de Caetano Veloso, música que viria a se transformar no primeiro clipe da carreira de Gilberto.

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#9. Brasil
(1980, Warner Music)

Mesmo lembrado pelo comportamento recluso, cobranças excessivas em estúdio e completa aversão aos palcos, João Gilberto sempre manteve uma forte relação de proximidade com toda uma geração de jovens artistas – principalmente aqueles influenciados pela sua obra. Prova disso está em um especial de 1971, para a extinta TV Tupi, em que o cantor e compositor baiano não apenas se apresentou ao lado de Caetano Veloso e Gal Costa, como disputa uma divertida partida de tênis de mesa com os músicos, esporte do qual era um exímio jogador. Veio justamente dessa relação o estímulo para as gravações de Brasil, registro de apenas seis faixas que contou com a colaboração de Caetano Veloso, Gilberto Gil e a cantora Maria Bethânia, destaque na regional No Tabuleiro da Baiana. São pouco menos de 30 minutos em que o time de artistas parece seguir a trilha de Gilberto, mergulhando na composição de temas minimalistas, estrutura que se reflete mesmo na colorida interpretação de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.

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#8. João Voz e Violão
(2000, Universal)

O salivar, o arranhar das cordas de violão, a quebra de ritmo e a completa limpidez das captações. Poucos registros parecem capturar a essência de João Gilberto quanto João Voz e Violão. Com produção assinada por Caetano Veloso, o trabalho não apenas resgata uma série de composições preciosas do cantor e compositor baiano, caso de Chega de Saudade, como reflete o minimalismo do músico baiano, entregue ao lento desvendar de ideias e experiências de forma particular. Um som minucioso, estrutura que se reflete em algumas das principais composições do disco, caso de Você Vai Ver, de Tom Jobim, Da Cor do Pecado, de Bororó, Desde que o Samba é Samba e Coração Vagabundo, ambas de Veloso. Marcado pela presença da atriz Camila Pitanga na imagem de capa do disco, o álbum seria o grande vencedor do Grammy na categoria Melhor Álbum de World Music, em 2001, além de servir de passagem para toda a sequência de performances ao vivo que o músico viria a executar no início dos anos 2000.

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#7. Amoroso
(1977, Warner)

Se em 1973, quando revelou ao público o elogiado “álbum branco”, João Gilberto parecia lidar com o minimalismo das formas instrumentais e vozes, quatro anos mais tarde, com a chegada de Amoroso, o direcionamento parecia ser outro. Sequência ao reencontro com Stan Getz, em The Best of Two Worlds (1976), obra que ainda contou com a colaboração de Miúcha, o trabalho que conta com arranjos de Claus Ogerman traz de volta o mesmo refinamento explícito durante a produção do clássico Getz/Gilberto (1964). São camadas orquestrais que se espalham aos poucos, sem pressa, abrindo passagem pare a percussão de Paulinho Da Costa e bateria econômica de Grady Tate. Entre as canções que recheiam o disco, preciosidades como ‘S Wonderful, com versos cantados em inglês pelo próprio artista, e toda uma sequência de faixas assinadas por Tom Jobim, caso de Wave, Caminhos Cruzados, Triste e Zingaro — título original de Retrato Em Branco E Preto. Nada que se compare ao cuidado em Estate, então desconhecida criação do italiano Bruno Martino, mas que acabou se popularizando por conta de Gilberto.

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Menção Honrosa
João Gilberto in Tokyo (2004, Verve)

Não são pouco os registro ao vivo de João Gilberto em que é evidente a frustração do músico baiano em relação à comoção do público e qualidade questionável da captação do som. Entretanto, em 2003, ao visitar o Japão para uma série de apresentações em Tokyo e Yokohama, o pai da bossa nova encontrou na plateia subserviente e devota, um direcionamento que se reflete no parcial silenciamento do público e consequente e entrega do artista. Em um intervalo de quase 70 minutos de duração, o músico passeia em meio a clássicos como Corcovado, Wave, Pra que Discutir com Madame? e Doralice, fazendo do registro um importante resgate criativo, estrutura que se reflete até o último instante da obra, em Aos Pés da Cruz. Bem-recebido pelo público e crítica, o trabalho seria encarado como o princípio de uma série de apresentações do artista pelo arquipélago japonês e um retrato minucioso da nossa música.

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#6. João Gilberto en México
(1970, Orfeon)

Com a boa repercussão em torno do elogiado Getz/Gilberto (1964), João Gilberto seguiu em uma série de apresentações pelos Estados Unidos e Europa. Entretanto, em 1969, convidado a participar de diferentes festivais em alguma das principais cidades mexicanas, o cantor e compositor brasileiro decidiu fixar residência na Cidade do México, onde, em 1970, deu vida ao versátil João Gilberto en México. Mesmo pontuado pela inserção de boleros, como Farolito e Besame Mucho, o trabalho mostra um artista sorridente e disposto a brincar com a colisão de ritmos de fórmulas pouco convencional, como na colorida interpretação para O Sapo, de João Donato. O mesmo cuidado se reflete nas autorais Acapulco e João Marcelo, essa última, uma homenagem do artista ao próprio filho. Nada que prejudique o surgimento de faixas marcadas pelo evidente direcionamento melancólico, proposta que ganha forma e cresce em canções como Esperança Perdida e Astronauta.

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#5. João Gilberto
(1961, Odeon)

Dos três registros de João Gilberto distribuídos pela Odeon, o homônimo álbum de 1961 talvez seja o que melhor evidencia as referências e fino alicerce criativo do músico baiano. Da homenagem ao conterrâneo Dorival Caymmi, em Samba da Minha Terra e Saudade da Bahia, passando pela percussão destacada que corre ao fundo de Você e Eu, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, cada fragmento do disco parece trabalhado em uma medida própria de tempo, revelando nuances e camadas instrumentais antes contidas nos dois primeiros álbuns do cantor, Chega de Saudade (1959) e O Amor, O Sorriso e A Flor (1960). Um lento desvendar de ideias, batidas e ritmos que se completa pelas orquestrações de Tom Jobim, junto de Walter Wanderley, grande responsável pelos arranjos que servem de estímulo para a formação de clássicos como Insensatez, O Amor em Paz, Coisa Mais Linda e O Barquinho.

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#4. Chega de Saudade
(1959, Odeon)

Em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores (…) Quando se acompanha ao violão é ele, quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele“. O texto escrito por Antônio Carlos Jobim na contracapa de Chega de Saudade, álbum de estreia de João Gilberto, funciona como um precioso indicativo do forte impacto cultural causado pelo músico baiano na segunda metade dos anos 1950. Concebido em um intervalo de poucos meses, o trabalho que conta com direção musical do próprio Jobim e percussão de Milton Banana, não apenas seria encarado como um marco da recém-fundada bossa nova, como estabeleceria uma série de conceitos rítmicos e melódicos que viriam a orientar a produção nacional e estrangeira pelos próximos anos. Do minimalismo na composição dos arranjos, vide a sensível Desafinado, passando pela estrutura rítmica e repertório que vai de músicas já conhecidas, como Bim Bom e a faixa-título, e regravações, caso de Rosa Morena, de Dorival Caymmi, e Morena Boca de Ouro, de Ary Barroso, tudo se projeta de fora deliciosamente calculada, síntese do completo esmero, ouvido atento e minúcia de seu realizador.

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#3. O Amor, O Sorriso e A Flor
(1960, Odeon)

Inaugurado pela metalinguística Samba de uma Nota Só, de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça, O Amor, O Sorriso e A Flor, segundo álbum de estúdio de João Gilberto, segue exatamente de onde o músico havia parado meses antes, durante o lançamento do fundamental Chega de Saudade (1959). Trata-se de um delicado exercício de estilo e consolidação estética da bossa nova, estrutura que se reflete no fino cruzamento entre letra, melodia, ritmo e harmonia. Para a realização do trabalho, que conta com direção artística de Aloysio de Oliveira, Gilberto decidiu estreitar a relação com Jobim, produtor da obra e responsável pela composição de parte expressiva do repertório assumido pela voz do artista baiano. São faixas como Corcovado, uma das canções mais regravadas da história da música brasileira, Só em Teus Braços, Discussão e Outra Vez. Surgem ainda faixas como Um abraço no Bonfá, dedicada ao violonista Luiz Bonfá e uma clara tentativa de Gilberto em replicar o estilo do homenageado, e O Pato, música que utiliza da letra simples como um propositado complemento rítmico, conceito que viria a ser aprimorado pelo artista ao longo dos anos.

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#2. Getz/Gilberto
(1964, Verve)

Em 1962, para promover a bossa nova nos Estados Unidos, o Itamaraty organizou no Carnegie Hall, em Nova Iorque, uma série de apresentações envolvendo diferentes nomes da música brasileira. Na plateia composta por quase três mil pessoas, veteranos do jazz norte-americano, como Miles Davis e Tony Bennett. No palco, um time seleto de instrumentistas que contou com Luiz Bonfá, Sérgio Mendes, Carlos Lyra e a atração mais esperada da noite: Tom Jobim e João Gilberto. Com a boa repercussão do espetáculo, o produtor Creed Taylor e o saxofonista Stan Getz logo estreitaram a relação com a dupla brasileira, tratando de organizar um registro colaborativo pela Verve Records. O resultado desse encontro, registrado entre 18 e 19 de março de 1963, está nas canções do emblemático Getz/Gilberto. Guiado pelo piano minimalista de Jobim, o violão ritmado de Gilberto e o saxofone de Getz, o registro, completo pela presença dos músicos Sebastião Neto (baixo) e Milton Banana (percussão), ganha ainda mais destaque na voz doce de Astrud Gilberto, esposa de João na época em que o trabalho foi concebido, e responsável por assumir os versos em inglês de clássicos imediatos como Garota de Ipanema e Corcovado. Mesmo concebido em meio a divergências criativas entre Gilberto e Getz, e lançado com atraso pela gravadora, o trabalho rapidamente atraiu a atenção do público, se transformando no álbum de jazz mais vendido de todos os tempos, além, claro, de conquistar quatro dos nove prêmios a que foi indicado no Grammy de 1965. Uma coleção de pequenos acertos que passa pela minuciosa imagem de capa da artista plástica Olga Albizu (1924–2005) e segue pela composição estilística que viria a orientar os rumos da bossa nova e do jazz pelos próximos anos.

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#1. João Gilberto
(1973, Polydor)

O silêncio sempre foi encarado como parte substancial da obra de João Gilberto. Espaços vazios a serem preenchidos pelo ritmo quebrado do violão e voz calculada, como um complemento direto à base instrumental de essência econômica, quase anêmica. “Quando eu canto”, respondeu ao jornalista John S. Wilson, em 1968, durante uma entrevista ao The New York Times, “penso num espaço aberto e límpido e é aí que eu toco os sons. É como se eu estivesse a escrever em uma folha de papel em branco. Tem que estar tudo muito tranquilo para que eu possa reproduzir os sons em que estou pensando”. E foi ao entender essa ocupação do silêncio que, em 1973, o músico baiano revelou ao público sua melhor obra. Gravado em Nova Iorque, o autointitulado registro que conta com produção de Rachel Elkind e a presença da engenheira de som Wendy Carlos, uma das pioneiras da música eletrônica, mostra um artista contido, porém, delirantemente inventivo. Utilizando apenas de um violão, a voz complementar de Miúcha, em Izaura, e a percussão discreta de Sonny Carr, Gilberto não apenas resgata uma série de elementos originalmente testados em Chega de Saudade (1973), como amplia parte expressiva deles. Da completa desconstrução de Águas de Março, música lançada um ano antes por Tom Jobim, passando pelo som transcendental de Unidú, Na Baixa do Sapateiro e Valsa (Como são Lindos os Youguis) (Bebel), cada fragmento do disco mostra a capacidade do artista em perverter o minimalismo da própria obra. São pinceladas instrumentais que se completam pela interpretação de clássicos recentes, como Falsa Baiana, e o diálogo com a nova geração de artistas, como Caetano Veloso, em Avarandado, e Gilberto Gil, na nostálgica Eu Vim da Bahia. Um exercício de evidente aprimoramento estético, como uma interpretação madura e naturalmente precisa de tudo aquilo que Gilberto vinha explorando desde o início da carreira.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.