Cozinhando Discografias: Cássia Eller

/ Por: Cleber Facchi 17/01/2022

Uma das principais vozes da música brasileira, Cássia Eller (1962 – 2001) teve uma trajetória curta, porém, intensa. Depois de um período de forte incerteza no início da década de 1990, a cantora acabou se firmando como uma das intérpretes mais versáteis e imprevisíveis do cenário nacional. De Caetano Veloso a Jimi Hendrix, de Cazuza a personagens malditos, como Arrigo Barnabé, Luiz Melodia e Itamar Assumpção, não foram poucos os compositores que ganharam novo significado na voz da cantora que morreu aos 39 anos, em 29 de dezembro de 2001, vítima de um infarto do miocárdio causado por uma malformação do coração. Duas décadas após a partida da artista, celebro a obra de Cássia em mais uma edição do Cozinhando Discografias em que organizo do pior para o melhor lançamento cada um dos trabalhos de estúdio e um importante registro ao vivo.


#7. Cássia Eller
(1990, PolyGram)

No início dos anos 1990, movidas pelo sucesso estrondoso de Marisa Monte, gravadoras de todo o Brasil buscavam por jovens cantoras dotadas de um repertório versátil e evidente entrega nos palcos. De Zélia Duncan à Adriana Calcanhotto, não foram poucas as artistas que assinaram contrato e rapidamente entraram em estúdio para as gravações dos primeiros registros autorais. Entretanto, poucas foram capazes de igualar o mesmo resultado de Cássia Eller no autointitulado disco de estreia. Do momento em que tem início, na inusitada releitura de Já Deu pra Sentir, de Itamar Assumpção, um dos favoritos da cantora, passando pela completa delicadeza de Por Enquanto, música originalmente lançada pela Legião Urbana, cada mínimo fragmento do registro evidencia a força criativa e capacidade da artista carioca em transitar por entre estilos de forma sempre particular. Parte desse resultado vem da possibilidade de Eller em trabalhar em estúdio ao lado do tio, o músico Wanderson Clayton. Um dos principais incentivadores da artista junto do produtor Mayrton Bahia, que havia contribuído para a assinatura de um contrato de três discos com a PolyGram, Clayton cria um ambiente que favorece a voz crua da intérprete. Exemplo disso acontece na releitura de Eleanor Rigby, dos Beatles, música que não apenas sintetiza a postura debochada e fluidez de Cássia ao longo do trabalho, como aponta a direção que seria seguida de forma ainda mais interessante pela cantora ao longo da década.

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#6. O Marginal
(1992, PolyGram)

A crueza explícita logo nos primeiros minutos de Caso Você Queira Saber, música de abertura em O Marginal, diz muito sobre o caminho percorrido por Cássia Eller no segundo álbum de estúdio da carreira. Menos acessível em relação ao introdutório registro apresentado dois anos antes, o trabalho que mais uma vez conta com produção de Wanderson Clayton e direção artística de Mayrton Bahia, mostra a potência e completa entrega da artista carioca durante toda a execução do material. São canções ancoradas em personagens malditos da música brasileira, como Arrigo Barnabé (Teu Bem) e Itamar Assumpção (Sonhei Que Viajava Com Você), porém, enquadradas de forma a dialogar com o que havia de mais intenso e característico na produção do período, vide o impacto de obras como Nervermind (1991), do Nirvana, lançada meses antes. Nada que fosse capaz de prejudicar a construção de faixas marcadas pelo suíngue e versatilidade da cantora, marca de Sensações, música originalmente composta por Luiz Melodia. Surgem ainda preciosidades como Bobagem, de Rita Lee e Lúcia Turnbull, versões para Hear My Train a Coming e If Six Was Nine, de Jimi Hendrix, e Eles, música que complementa a poesia homoafetiva de Rubens, lançada no disco anterior. Embora consistente e repleto de bons momentos, O Marginal foi recebido de forma tímida pelo público. Foram pouco mais de 40 mil cópias vendidas, desempenho que resultaria em uma imposição maior da gravadora nos trabalhos seguintes e uma considerável mudança de direção criativa.

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#5. Dez de Dezembro
(2002, Universal Music)

Passado o lançamento de Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo (1999) e evidente sucesso em torno do registro, Cássia Eller convidou Nando Reis a produzir seus próximos trabalhos. Embora contente com o pedido, o músico paulistano havia combinado com a artista que produziria apenas mais dois discos, incentivando a cantora carioca a estreitar a relação com outros colaboradores. Entretanto, com a morte precoce da amiga, em dezembro de 2001, Reis, que produziu o elogiado Acústico MTV (2001), havia ficado com um registro em aberto. Autorizado pela família, o compositor assumiu a tarefa de organizar o primeiro disco póstumo da cantora, Dez de Dezembro. Com título inspirado pelo aniversário de Cássia, o álbum naturalmente evidencia a versatilidade e vasto repertório da artista. De velhas conhecidas das apresentações ao vivo, como Eu Sou Neguinha e Nenhum Roberto, passando por raridades, como Vila do Sossego, deixada de fora do Acústico MTV, sobram momentos de evidente beleza. Porém, foram as inéditas No Recreio e All Star, representação lírica da amizade entre Nando e Cássia, que realmente atraíram a atenção do público, fazendo do trabalho um precioso, ainda que melancólico, capítulo na curta discografia da cantora.

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#4. Veneno Antimonotonia
(1997, PolyGram)

Com a boa repercussão do terceiro álbum de estúdio e o sucesso em torno do primeiro disco ao vivo, lançado em 1996, Cássia Eller recebeu carta branca da gravadora para investir em um novo trabalho. Entretanto, o que deveria resultar em uma obra marcada por criações inéditas e releituras, rapidamente se transformou em um tributo a Cazuza. E não poderia ser diferente. Com o sucesso em torno de Malandragem, carro-chefe do registro apresentado em 1994, a cantora, agora acompanhada pelo experiente Waly Salomão, decidiu mergulhar de cabeça na obra do conterrâneo carioca. Para além do já esperado repertório que contou com Bete Balanço, Brasil, Pro Dia Nascer Feliz, Todo Amor Que Houver Nessa Vida e a excelente releitura de Blues da Piedade, sobrevive nas canções menos conhecidas do poeta alguns dos momentos de maior destaque do álbum batizado de Veneno Antimonotonia. Composições como Mal Nenhum e Só As Mães São Felizes que crescem substancialmente na voz e na interpretação da artista. Sucesso comercial, assim como os registros que o antecedem, o trabalho ainda seria acompanhado de um disco ao vivo, lançado no ano seguinte.

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#3. Cássia Eller
(1994, PolyGram)

Aborrecida por conta da repercussão negativa em torno de O Marginal (1992), Cássia Eller decidiu seguir um caminho diferente durante a produção do terceiro álbum. Sem que a gravadora soubesse, a cantora, que havia acabado de dar a luz ao primeiro filho, entrou no estúdio particular do produtor Guto Graça Mello em busca de um repertório mais acessível, porém, ainda versátil, como um regresso ao material entregue no autointitulado registro de estreia. O resultado desse processo está na entrega de um trabalho que preserva a essência da artista carioca, mas que dialoga com uma parcela ainda maior do público. Não por acaso, algumas das músicas mais conhecidas da cantora integram o disco. De 1º de Julho, dada de presente por Renato Russo, passando por E.C.T, colaboração entre Marisa Monte, Carlinhos Brown e o futuro parceiro, Nando Reis, sobram momentos de evidente acerto. Nada que se compare ao fenômeno em torno de Malandragem. Originalmente composta por Cazuza e Frejat para Ângela Rô Rô, porém, descartada pela artista, a canção encontrou na voz e interpretação potente de Cássia um tratamento único. Mesmo velhas conhecidas do público, como Lanterna dos Afogados, dos Paralamas do Sucesso, e Pétala, de Djavan, parecem adaptadas de forma particular. Aprovado de imediato pela gravadora, o registro viria a se transformar no maior sucesso comercial da cantora até aquele ponto. Foram mais 100 mil cópias vendidas, desempenho que não apenas garantiu uma renovação do contrato com a PolyGram, como abriu passagem para uma série de outras obras ainda mais impactantes e comercialmente bem-sucedidas.

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#2. Acústico MTV
(2001, Universal Music)

Entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000, não foram poucos os artistas que encontraram no Acústico MTV uma maneira de voltar ao estrelato. Do moribundo Capital Inicial ao Titãs, grupo que lançaria o complementar Volume Dois (1998), sobram nomes que investiram no modelo. Entretanto, poucos foram tão bem-sucedidos criativamente quanto Cássia Eller. Ainda que preserve todos os elementos característicos do formato, como o resgate de antigos sucessos, caso de Malandragem e O Segundo Sol, sobrevive no repertório marcado por interpretações inéditas o estímulo para uma obra totalmente anárquica e maior do que qualquer outro registro ao vivo da cantora. Do momento em que tem início, em Non, Je Ne Regrette Rien, eternizada na voz de Édith Piaf, passando por Vá Morar com o Diabo, de Riachão, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, é possível esperar de tudo da artista carioca, menos o óbvio. A própria sequência de fechamento do disco, com a participação do rapper Xis e membros da Nação Zumbi, evidencia o direcionamento caótico e força do material. Nada que prejudique a produção de músicas delicadas, marca da interpretação orquestral de Por Enquanto e Relicário, completa pela participação do parceiro Nando Reis. Último trabalho lançado por Cássia em vida, o registro que alcançaria o impressionante número de um milhão de cópias vendidas, ainda garantiria uma segunda indicação da cantora ao Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Rock Brasileiro, onde seria vencedor.

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#1. Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo
(1999, Universal Music)

Não existe trabalho dentro da discografia de Cássia Eller que se compare ao material entregue em Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo. Da belíssima imagem de capa, uma fotografia de Flávio Colker com a cantora de calcinha, usando peruca e camiseta emprestada pelo maquiador Duda Molinos, passando pela delicadeza na construção dos arranjos, tudo soa como uma clara transformação quando voltamos os ouvidos para o material entregue no antecessor Veneno Antimonotonia (1997). Curioso pensar que um disco tão equilibrado quase não existiu. Logo no primeiro ensaio, tudo parecia caótico, com a cantora abandonando o estúdio completamente enfurecida. O próprio produtor do álbum, o músico Nando Reis, se ofereceu para deixar as gravações. Entretanto, após um breve respiro e uma conversa entre os dois, as expectativas se alinharam e a gravação fluiu de maneira harmônica. Vem justamente dessa forte relação entre o ex-integrante dos Titãs e a artista algumas das melhores composições do disco. Do romantismo sutil que embala os versos de As Coisas Tão Mais Lindas, passando pela poesia enigmática de O Segundo Sol, um dos maiores sucessos da carreira da cantora, cada fragmento do álbum evidencia o refinamento no processo de composição do material. Mesmo faixas assinadas por outros artistas, como Palavras ao Vento, de Marisa Monte e Moraes Moreira, e Gatas Extraordinárias, feita por Caetano Veloso especialmente para a cantora carioca, parecem encaixadas de maneira coesa, reforçando a consistência do registro. Tamanho esmero resultou em uma obra recebida de forma positiva pelo público – foram mais de 300 mil cópias vendidas –, uma indicação ao Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa, e o princípio da parceria entre Nando Reis e Cássia Eller, uma das mais sensíveis, prolíficas e bem-sucedidas da história recente da música brasileira.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.