Disco: “Reflektor”, Arcade Fire

/ Por: Cleber Facchi 30/10/2013

Arcade Fire
Alternative/Indie/Electronic
http://arcadefire.com/

Por: Cleber Facchi

Arcade Fire

Who The Fuck Is Arcade Fire?!?

A dúvida de quem viu o “desconhecido” coletivo subir ao palco da 53ª edição do Grammy Awards, em 2011, para faturar o título de disco do ano, talvez seja esclarecida somente agora. Quarto registro em estúdio do Arcade Fire, Reflektor (2013, Merge) assume no isolamento temático – tão típico da estética conceitual da banda – um princípio natural de transformação e (re)invento. Longe dos subúrbios, funerais ou da poesia barroca que parecia estável até pouco tempo, o grupo orquestrado com firmeza por Win Butler encontra no cenário hermético da década de 1980 um ponto natural de ruptura. Uma obra capaz de converter já foi aproveitado de forma redundante, em décadas de clichês, dentro de um espaço aberto em essência à novidade.

Seguindo exatamente de onde os sintetizadores de Sprawl II (Mountains Beyond Mountains) encerraram a composição de The Suburbs, em 2010, Reflektor assume no azulejo sintético a obra mais específica e ainda assim plural da curta discografia do grupo. Manifestação confessa de tudo o que alimenta a base instrumental dos canadenses, o trabalho firma no catálogo de experiências conquistadas há 30 anos uma autorização explícita para visitar a obra de gigantes como Talking Heads, David Bowie, U2 e demais veteranos do mesmo cenário. Entretanto, assim como no rock de arena e os flertes orquestrais que apresentaram a banda há uma década, mais do que recriar um retrato de um período ou gênero específico, o Arcade Fire parece interessado em brincar com o próprio entendimento desse resultado.

Propositalmente dividido em duas partes – ou noites, como Here Comes the Night Time revela -, o álbum assume nessa separação temática um jogo de referências a serem exploradas com maior crueza. Para o eixo inicial, o grupo concentra na herança do pós-punk (We Exist), nas passagens pela World Music (Flashbulb Eyes) e até em novas apropriações do rock de arena (Normal Person) toda a base conceitual para o álbum. São acertos honestos com a fase mais comercial de David Bowie – entre Lodger (1979) e Let’s Dance (1983) -, o perfume do Talking Heads (em Remain in Light, 1980) ou até mesmo ecos de The Clash pós-London Calling, detalhamento que a acelerada You Already Know firma com visível naturalidade.

É justamente dentro desse cenário amplo que James Murphy, ex-LCD Soundsystem e um dos produtores do álbum, mostra de fato a que veio. Transformando o jogo de experiências desconexas do álbum em um catálogo coeso, o nova-iorquino converte o bloco inicial do disco como uma espécie de coletânea não intencional. É como se cada música assumisse um ponto específico de tudo o que caracterizou a produção musical do período – ou mesmo pré-80’s -, delineando um zigue-zague temático que ecoa homogêneo quando observado em totalidade. Com exceção da faixa-título – canção que flerta abertamente com a cena Disco e a herança de David Bowie em Low (1977) -, cada música fixa uma posição de ruptura em relação à e essência dos canadenses. Uma espécie de despedida dos orquestrais extensos ou detalhamentos mezzo épicos tão típicos do grupo – mesmo que por alguns minutos.

Se a primeira parte do disco “pertence” à Murphy, então o ato seguinte de Reflektor é todo de Markus Dravs. Velho colaborador do grupo canadense – desde o lançamento de Neon Bible (2007) -, o produtor faz da “segunda noite do registro” uma versão sintética dos mesmos detalhamentos expostos com a chegada de Funeral (2004). Basta o casamento entre as melancólicas Awful Sound (Oh Eurydice) e It’s Never Over (Oh Orpheus) para perceber o quanto a base criativa do grupo se mantém a mesma, apenas “adaptada” ao palco de sintetizadores e argumentos eletrônicos do novo disco. Com um novo passo em relação à segunda metade dos anos 1980, o disco evoca toda a aura do U2 pré-Achtung Baby, trazendo de volta o instrumental climático e o teor soturno que os velhos seguidores talvez estivessem esperando.

Contudo, o fluxo sombrio, mesmo em um sentido de oposição ao ato inicial do álbum, de forma alguma distancia o grupo de instantes “festivos”. Exemplo atento disso está no tratamento dado à Afterlife, composição que vai dos cultos de Vodu às pistas de dança em um transe melódico explícito, valorizando toda a aproximação da banda com a cultura caribenha, principalmente o Haiti. Mesmo quando opta para visitar a calmaria, a necessidade de inventar, ou melhor, de resgatar pequenos acertos prévios de forma renovada, se destacada. É o caso de Porno, música que abraça a discografia de Prince em uma atmosfera ponderada, quase uma pista do que pode alimentar o trabalho do grupo em um futuro próximo. Até a arrastada Supersymmetry, música que passaria fácil como um produto de Bono Vox, brinca com os ruídos em um estágio de renovação, garantindo o fechamento exato ao disco e um possível encaminhamento para o trabalho seguinte.

Em um afastamento ao resultado proposto aos discos anteriores, o novo álbum talvez seja a obra “mais simples” já apresentada pelo Arcade Fire em termos líricos. Tratados como um complemento natural aos sons, os versos surgem e desaparecem dentro de pequenos loops harmônicos. Esse efeito está presente no “Scream and shout ‘till we work it out?” de Afterlife, “It’s just a Reflektor” de Reflektor ou mesmo no título explícito de “Here comes the night time”. É como se as palavras, ao serem entoadas sempre em proximidade aos arranjos, resultassem um efeito de mantra dentro da arquitetura mística do registro. Já em We Exist e Joan Of Arc, por exemplo, prevalece a dúvida, afinal, será que as letras dançam de acordo com sons ou o efeito contrário é aplicado em virtude da construção poética das faixas?

Mosaico declarado de referências que vão da cultura grega ao colorido neon dos anos 1980, Reflektor, mais do que uma continuação aos inventos prévios da banda, é a abertura para um universo paralelo dentro da obra do Arcade Fire. A julgar pela forma como o grupo vem se apresentando – sob o título de The Reflektors -, talvez seja exatamente essa a ideia proposta por Butler e compartilhada pelos companheiros de banda. Ao mesmo tempo em que traços específicos do coletivo surgem durante todo o disco, cada faixa caminha com sobriedade para um ponto crescente de distanciamento. Um espaço de desapego que apenas reforça o quanto o cenário de conforto afirmado em The Suburbs está longe de ser concretizado. Dessa forma, a dúvida sobre “Quem é o Arcade Fire“? permanece de forma justa. Um questionamento tão honesto quanto na época em que a banda foi apresentada, como quando subiu ao palco do Grammy Awards e cada vez mais parece difícil de ser esclarecida.

 

Arcade Fire

Reflektor (2013, Merge)

Nota: 9.5
Para quem gosta de: Vampire Weekend, Talking Heads e David Bowie
Ouça: Here Comes the Night Time, Afterlife e Reflektor

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.