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Crítica

Juçara Marçal

: "Delta Estácio Blues"

Ano: 2021

Selo: QTV / Mais um Discos

Gênero: Experimental, Eletrônica

Para quem gosta de: Kiko Dinucci e Ava Rocha

Ouça: Crash e Sem Cais

9.3
9.3

Juçara Marçal: “Delta Estácio Blues”

Ano: 2021

Selo: QTV / Mais um Discos

Gênero: Experimental, Eletrônica

Para quem gosta de: Kiko Dinucci e Ava Rocha

Ouça: Crash e Sem Cais

/ Por: Cleber Facchi 05/10/2021

Fragmentos de vozes, ruídos cacofônicos e restos de matéria histórica em decomposição. Depois de dançar com a morte no lúgubre Encarnado (2014), Juçara Marçal estabelece nas canções de Delta Estácio Blues (2021, QTV / Mais Um Discos), segundo álbum em carreira solo, um inusitado cruzamento de informações. São retalhos sintéticos e batidas que se espalham em meio a memórias, personagens fictícios e releituras de forma totalmente imprevisível. Instantes em que a artista nascida em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, resgata e adapta elementos da própria trajetória artística, como em um remix torto e mutável.

Não por acaso, Marçal fez de Crash a primeira composição a ser apresentada ao público. Brutal, a canção desferida como um soco sintetiza parte das experiências e conceitos que serão explorados pela artista e o produtor Kiko Dinucci, parceiro de banda no Metá Metá, até os últimos segundos da obra. Enquanto a rima composta por Rodrigo Ogi pega o ouvinte desprevenido – “Beatrix Kiddo, liquido, com golpes de Aikido / Acerto o pé do ouvido / Ouvindo o seu gemido sofrido, decido” –, sintetizadores frenéticos e samples se entrelaçam de forma provocativa, forte. É possível esperar qualquer coisa da cantora, menos o óbvio.

E isso fica bastante evidente logo nos primeiros minutos da obra, em Vi de Relance a Coroa. Com arranjos e versos de Siba, a faixa parte de uma estrutura típica de um maracatu rural, com vozes sempre destacadas, divididas entre o canto e a rima, porém, ganha novo significado na sobreposição de ideias e ambientações retrofuturísticas geradas pelos sintetizadores de Cadu Tenório, parceiro de Marçal desde Anganga (2015). Nada que se compare ao material entregue em Sem Cais. Com versos que discutem o caos estimulado pelas redes sociais – “A intolerância, a loucura de todos nós / Emojis não vão qualificar” –, a música composta em parceria com Negro Leo, como uma extensão do material apresentado em Desejo de Lacrar (2020), muda de direção a todo instante, jogando com a interpretação do ouvinte de maneira incerta.

Uma vez imerso nesse entroncamento de informações onde cada música nasce a partir da sedimentação de experiências, ritmos e sentimentos, mesmo a interpretação da realidade parece deliciosamente distorcida e adaptada ao trabalho. Exemplo disso acontece na própria faixa-título da obra. Partindo de um exercício imaginativo, Rodrigo Campos, autor da canção, estabelece uma proposta anticolonialista em que mostra o que teria acontecido se Robert Johnson, um dos pais do blues, tivesse firmado um pacto mítico com os sambistas da Turma do Estácio. São narrativas fantásticas, porém, sempre descritivas e urbanas, proposta que vai da personagem sedutora criada por Tulipa Ruiz, em Ladra, uma das composições mais acessíveis do disco, ao nostálgico passeio pelo litoral de São Paulo, em Corpus Christi, de Douglas Germano.

Embora atrativo durante toda sua execução, como uma interpretação particular de Marçal sobre a música pop, Delta Estácio Blues em nenhum momento se distancia da produção de faixas marcadas pelo caráter experimental e de difícil digestão. É o caso da industrial Baleia, registro que esbarra no mesmo território criativo de Cavala (2018), de Maria Beraldo, autora da canção, porém, de forma ainda mais densa. A própria Lembranças do Que Guardei, parceria com Fernando Catatau, da Cidadão Instigado, se espalha em um labirinto de formas pouco usuais que vai da desconstrução do brega ao trap. Vem desse mesmo bloco as releituras de Oi, Cat, de Tantão e Os Fita, e La femme à Barbe, de Brigitte Fontaine. Composições extraídas de um espetáculo ao vivo da cantora, mas que parecem deslocadas do restante do trabalho.

Independente das decisões criativas, rumos e permanente atravessamento de informações, Delta Estácio Blues em nenhum momento oculta a imagem e força criativa de Marçal. Mesmo soterrada em meio a escombros sintéticos e vozes maquiadas pelo auto-tune, evidente é esforço da cantora em preservar a própria identidade. E não poderia ser diferente. Produzido em um intervalo de quase quatro anos, o sucessor de Encarnado foi todo concebido a partir de investigações rítmicas que vão da captação de ruídos a músicas picotadas de antigos discos de vinil. Um minucioso processo de pesquisa e ressignificação que resgata, tritura e remonta tudo aquilo que a artista tem produzido em mais de três décadas de carreira.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.