Cozinhando Discografias: Built To Spill

/ Por: Cleber Facchi 16/07/2018

 

Formado pelo músico Doug Martsch no início dos anos 1990 e inicialmente pensado como um projeto de essência mutável, em que cada álbum seria produzido por um time diferente de músicos, o Built To Spill aos poucos se transformou em um dos nomes mais relevantes da cena alternativa dos Estados Unidos. Inspiração confessa para o trabalho de bandas como Death Cab For Cutie, Modest Mouse, The Strokes e outros tantos projetos norte-americanos, o grupo original da cidade de Boise, Idaho, conta com um limitado, porém, expressivo catálogo de obras. Trabalhos como There’s Nothing Wrong with Love (1994) Keep It Like a Secret (1999) e You in Reverse (2006) agora organizados do pior para o melhor lançamento em mais uma edição da seção Cozinhando Discografias.

 

#8. Ultimate Alternative Wavers
(1993, C/Z Records)

Talvez instável quando próximo de outros trabalhos melodicamente mais apurados, Ultimate Alternative Wavers, álbum de estreia do Built To Spill, reflete com naturalidade grande parte dos elementos e experiências que seriam aprimoradas pelo grupo norte-americano ao longo da carreira. Das vozes ásperas e guitarras claramente inspiradas pela obra do Dinosaur Jr, em Revolution, passando pelo refinamento estrutural e lenta construção de Shameful Dread, música que ainda utiliza de samples de um episódio d’Os Simpsons, cada elemento do trabalho se apoia claramente na versatilidade da banda — na época formada por Doug Martsch (guitarra e voz), Brett Netson (guitarra e baixo) e Ralf Youtz (bateria). Uma coleção de ideias tortas, que dialoga com a mesma inexatidão do som produzido por contemporâneos como Pavement, Guided By Voices e demais representantes do rock alternativo dos Estados Unidos que tiveram seus primeiros registros lançados no início da década de 1990. Frações poéticas e instrumentais que seriam melhor exploradas no álbum seguinte, There’s Nothing Wrong with Love (1994).

 

Menção Honrosa: The Normal Years
(1995, K Records)

A década de 1990 é repleta de coletâneas de sobras/singles tão importantes quanto qualquer outro álbum de estúdio. Do caótico Incesticide (1992), do Nirvana, ao excelente Pisces Iscariot (1994), do grupo The Smashing Pumpkins, sobram registros que mostram a força e rica produção do período. É o caso de The Normal Years. Concebido a partir de músicas que acabaram de fora dos dois primeiros álbuns de estúdio do Built To Spill, Ultimate Alternative Wavers (1993) e There’s Nothing Wrong with Love (1994), além, claro, de versões para o trabalho de outros artistas, como o cover para Some Things Last a Long Time, de Daniel Johnson, cada elemento da coletânea amplia a força criativa e ritmo dado ao trabalho do grupo norte-americano. São canções como a enérgica Still Flat, música originalmente lançada na coletânea Red Hot + Bothered (1995), e demais instantes de pura euforia que jogam com a experiência do ouvinte, convidado a se perder em um território de pequenas incertezas, guitarras e versos berrados, conceito que orienta o trabalho da banda até a derradeira Terrible/Perfect.

 

#7. There Is No Enemy
(2009, Warner Bros. / ATP Recordings)

There Is No Enemy concentra tudo aquilo que você poderia esperar de um álbum do Built To Spill. Das melodias e guitarras que abrem o disco, em Aisle 13, passando pela lenta construção da extensa Good Ol’ Boredom, até alcançar a melancolia contida de Life’s a Dream, cada elemento do disco parece transportar o ouvinte para a boa fase do grupo norte-americano, dialogando com a produção de obras lançadas entre o final dos anos 1990 e início da década seguinte. São pouco mais de 50 minutos em que Doug Martsch estreita a relação com o experiente Dave Trumfio, artista que já havia trabalhado com nomes como Wilco e Grandaddy. O resultado dessa colaboração está na entrega de um álbum talvez contido quando próximo do antecessor You in Reverse (2006), mas não menos interessante, cuidado que se reflete na produção de músicas como Things Fall Apart e Pat, indicativos da poesia minuciosa de Martsch, base para cada uma das canções do disco.

 

#6. Untethered Moon
(2015, Warner Bros.)

Mesmo desfalcado de seus principais colaboradores – Scott Plouf e Brett Nelson haviam deixado a banda em 2012 –, com o lançamento de Untethered Moon, Doug Martsch parecia tão intenso (e criativo) quanto em início de carreira. Guiado pela força dos versos e guitarras sempre diretas do músico, cada elemento do oitavo álbum de inéditas do Built To Spill mostra o cuidado do grupo norte-americano, resultando em um criativo diálogo musical com obras como Keep It Like a Secret (1999) e Ancient Melodies of the Future (2001). São pouco mais de 40 minutos em que Martsch e a esposa, Karena Youtz, co-letrista do disco, passeiam por entre sentimentos e experiência particulares, fazendo de Untethered Moon um dos registros mais sensíveis de toda a discografia da banda. Claro que o aspecto contemplativo dado aos versos em nada interfere na composição de uma obra essencialmente enérgica, direcionamento explícito tão logo o trabalho tem início, em All Our Songs, e ampliado na produção de músicas como On Te Way, Some Other Song e Never Be the Same.

 

#5. Ancient Melodies of the Future
(2001, Warner Bros. / Up)

A boa repercução em torno Keep It Like a Secret foi tamanha, que ainda em 1999, Doug Martsch deu vida a dois ótimos EP – Carry the Zero e Center of the Universe –, além, claro, de registrar uma apresentação ao vivo da banda durante a turnê de divulgação da obra – posteriormente lançada no intenso Live (2000). Mesmo dentro desse corrido processo, o músico continuou trabalhando na produção de um novo registro de inéditas, material entregue ao público durante o lançamento do ótimo Ancient Melodies of the Future. Claramente pensado como uma sequência do trabalho produzido dois anos antes, o álbum se projeta a partir de faixas curtas, sempre guiadas pelas guitarras e vozes melódicas de Martsch. Canções como a inaugural Strange, com suas distorções que dialogam com a boa fase do Pixies, a melancolia desesperadora de In Your Mind, além de faixas que refletem a completa versatilidade da banda – completa por Brett Nelson e Scott Plouf – em estúdio, caso de Happiness. Uma obra segura, como uma clara extensão de tudo aquilo que a banda de Boise vinha explorando desde a segunda metade dos anos 1990.

 

Menção Honrosa: Live
(2000, Warner Bros.)

Difícil ouvir as canções de Live e não pensar no disco como uma peça importante dentro da discografia do Built To Spill. Na contramão de outros registros ao vivo, em geral, centrados na interpretação de uma obra específica, Doug Martsch decidiu fazer do álbum uma fuga do material apresentado meses antes, durante o lançamento de Keep It Like a Secret (1999). Salve The Plan e Broken Chairs, respectivamente, faixas de abertura e encerramento do disco, grande parte do material escolhido para o álbum se revela como uma clara tentativa do Martsch em resgatar pontos específicos da própria carreira, principalmente canções lançadas no ótimo Perfect from Now On, de 1997. Entretanto, a grande beleza do disco acaba ficando justamente por conta de versões do grupo para o trabalho de outros artistas. Canções como Virginia Reel Around the Fountain, originalmente lançada pelo Halo Benders, projeto paralelo de Martsch com Calvin Johnson, do Beat Happening, além de Singing Sores Make Perfect Swords, do grupo Love as Laughter. Nada que se compare à épica interpretação de Cortez the Killer, música originalmente lançada por Neil Young no álbum Zuma (1975), porém, aqui adaptada aos ruídos e guitarras cuidadosamente espalhadas em um intervalo de mais de 20 minutos de duração.

 

#4. You in Reverse
(2006, Warner Bros.)

Passado o lançamento Ancient Melodies of the Future (2001), Doug Martsch decidiu investir na produção do primeiro álbum em carreira solo, o bom Now You Know (2002), obra em que se dedicou a explorar elementos do folk e blues, como uma parcial fuga do som produzido com o Built To Spill. Claro que a propositada curva artística em nada interferiu nas apresentações do grupo, embarcando em uma extensa turnê que durou mais de dois anos e resultou em mais de 150 shows. Durante esse mesmo período, Martsch e os parceiros de banda, incluindo um novo guitarrista, Jim Roth, entraram em estúdio para as gravações do sexto álbum de estúdio da banda, You in Reverse. Embora finalizado em 2004, o registro só foi entregue ao público dois anos mais tarde, espera justificada logo nos primeiros minutos do disco, na extensa Goin’ Against Your Mind. São pouco menos de nove minutos em que as tradicionais guitarras de Martsch cobrem toda a extensão da faixa, transportando o som produzido pelo Built To Spill para um novo território. Das vozes berradas à força da bateria de Scott Plouf, cada elemento da faixa reflete a força do grupo norte-americano, cuidado evidente em outros momentos do disco, como em Conventional Wisdom, Wherever You Go e, principalmente, Liar, possivelmente uma das músicas mais conhecidas da banda.

 

#3. There’s Nothing Wrong with Love
(1994, Up)

Um salto. Pouco menos de um ano após o lançamento do primeiro álbum de estúdio, Ultimate Alternative Wavers (1993), Doug Martsch e seus renovados parceiros de banda, Brett Nelson e Andy Capps, estavam de volta com um novo registro de inéditas, There’s Nothing Wrong with Love. Como indicado no próprio título do trabalho – em português, “não há nada de errado com o amor” –, cada fragmento do disco revela a força dos sentimentos explorados por Martsch, conceito reforçado logo nos primeiros minutos da obra, na melancólica Reasons. “Cada agora é uma grande surpresa / Me ajude a passar por isso / Fique comigo até eu morrer / Não há mais nada que eu queira tentar“, canta enquanto guitarras e batidas se alteram a todo instante, jogando com a experiência do ouvinte. O mesmo refinamento poético e instrumental se reflete em outros momentos estratégicos do disco, como em Car, música que se abre para a inserção de arranjos de cordas, e, principalmente, em Distopian Dream Girl, composição que parece dialogar com outros representantes do rock alternativo no mesmo período. Primeiro registro da parceria com Phil Ek, There’s Nothing Wrong with Love abriria passagem para tudo aquilo que o grupo norte-americano viria a produzir até o fim da década de 1990.

 

#2. Perfect from Now On
(1997, Warner Bros.)

Com o lançamento de There’s Nothing Wrong with Love, Doug Martsch já havia dado uma boa mostra daquilo que ele e o parceiro de produção, o músico Phil Ek, seriam capazes de realizar dentro de estúdio. Nada que se compare ao trabalho da dupla no maduro Perfect from Now On. Sequência ao material apresentado um ano antes, durante a produção da coletânea The Normal Years (1995), o álbum de oito faixas, o primeiro com distribuição pela gigante Warner Bros., mostra o esforço de Martesch na formação de uma obra ainda mais grandiosa, proposta que se reflete logo na abertura do disco, durante os mais de 12 minutos das inaugurais Randy Described Eternity e I Would Hurt a Fly. Concebido em meio a uma série de problemas técnicos – Ek perdeu parte das fitas originais por conta da conservação irregular do material –, Perfect from Now On precisou ser gravado três vezes até ser finalizado. Pequenos tropeços que apenas serviram para o fortalecimento da obra. Exemplo disso está nos quase nove minutos de Velvet Waltz, uma verdadeira viagem instrumental e poética que reflete o cuidado de Martsch na composição de cada elemento, um claro indicativo de tudo aquilo que viria ser melhor explorado meses mais tarde em Keep It Like a Secret (1999). Junto de obras como Slanted and Enchanted (1992) e In the Aeroplane over the Sea (1998), um perfeito exemplar da música produzida há mais de duas décadas.

 

#1. Keep It Like a Secret
(1999, Up / Warner Bros. Records)

Do ápice alcançado em Perfect from Now On (1997), Doug Martsch decidiu ir além. Na contramão do material apresentado dois anos antes, o músico norte-americano passou a investir na composição de faixas menores, porém, ainda mais detalhistas, colidindo guitarras carregadas de efeitos e vozes melódicas, mudança de direção que se revela por completo logo na inaugural The Plan. Claro que a propositada busca por novas sonoridades em nada interfere na produção de atos lentos e deliciosamente complexos. É o caso de Carry the Zero, ainda hoje, uma das músicas mais executadas do Built To Spill, além, claro, da derradeira Broken Chairs, com seus quase nove minutos de pura colisão de ideias e guitarras sujas. Co-produzido em parceria com Phil Ek, Keep It Like a Secret é claramente uma tentativa de Martsch em dialogar com outros exemplares do rock alternativo produzidos no final da década de 1990. São guitarras rápidas, como em Sidewalk, ou mesmo atos de pura confissão romântica, como em Else, uma das músicas mais sensíveis já compostas por Martsch – “Apenas deste lado do amor / É onde você encontrará a confiança … Suas necessidades te consomem / Para sempre / E com isso está a necessidade de estar aqui / Juntos“. Ponto de partida para o material que viria a ser produzido pela banda na década seguinte, Keep It Like a Secret ainda serviria de inspiração para nomes como Death Cab For Cutie, Modest Mouse e toda uma geração de artistas cresceram no início dos anos 2000.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.