Certa vez, um amigo disse: o Fugazi é a banda favorita do seu artista favorito. E ele estava certo. De Elliott Smith à Lorde, de Hayley Williams a Eddie Vedder, não são poucos os músicos que já declararam seu fascínio pelo grupo de Washington. E não poderia ser diferente. Seja pelo repertório irretocável montado em um intervalo de quase duas décadas ou pela postura política de seus idealizadores, sobram elementos que fazem do quarteto formado por Ian MacKaye, Guy Picciotto, Joe Lally e Brendan Canty um dos mais importantes e influentes da história recente da música. A própria escolha da banda em interromper suas atividades no auge, com o público ainda sedento, funciona como uma boa representação desse domínio criativo e caráter provocativo que sempre orientou o trabalho do grupo. Mais de duas décadas após o início do hiato adotado pelo Fugazi, é hora de olhar para trás, relembrar e organizar cada um dos registros apresentados pela banda do pior para o melhor lançamento em mais uma edição do Cozinhando Discografias.
Menção Honrosa: First Demo
(2014, Dischord)
Em janeiro de 1988, o Fugazi tinha pouco mais de dez apresentações ao vivo quando entrou em estúdio para a produção do primeiro registro demo. Ainda assim, o quarteto encabeçado por Ian MacKaye, na época o principal vocalista da banda, já demonstrava um entrosamento único. E isso fica bastante evidente no material entregue na coletânea First Demo (2014). Primeiro lançamento do grupo em um intervalo de mais de uma década, o álbum apresenta versões embrionárias de canções como Waiting Room, Merchandise e demais faixas que seriam reveladas nos primeiros trabalhos de estúdio do quarteto. Entretanto, o destaque acaba ficando por conta de preciosidades como In Defense of Humans, originalmente lançada como parte da coletânea State of the Union (1989), e Turn Off Your Guns, faixa que acabou de fora dos discos oficiais, porém, acabou integrando a série de apresentações ao vivo que o quarteto lançou nos anos 2000. Um registro documental, mas que concentra uma série de elementos bastante característicos e que seriam aprimorados pelo grupo nos próximos anos.
#8. Instrument
(1999, Dischord)
Com direção de Jem Cohen, Instrument (1999) é um documentário que acompanha o Fugazi em um intervalo de mais de uma década. Da formação da banda, no final dos anos 1980, ao amadurecimento artístico e sempre catárticas apresentações ao vivo, cada fragmento da película funciona como um precioso registro do quarteto em diferentes fases da carreira. Além de contar com a interferência criativa dos quatro integrantes durante o processo de montagem do trabalho, Cohen decidiu investir em composições instrumentais como base para a trilha sonora do material. O resultado desse processo, que se completa por algumas poucas músicas que destacam o uso da voz, está no resgate de velhas conhecidas do grupo norte-americano. Entretanto, são as versões demo, sobras de antigos trabalhos e pequenas raridades que realmente chamam a atenção. É o caso de Afterthought e a melancólica I’m So Tired, uma balada regida pelo piano e vozes de Ian MacKaye, mas que ganharia diferentes formatações ao ser reinterpretada por nomes como Eddie Vedder e Laura Stevenson.
#7. Steady Diet of Nothing
(1991, Dischord)
Posicionado entre duas grandes obras, o introdutório Repeater (1990) e In on the Kill Taker (1993), Steady Diet of Nothing é um trabalho que muitas vezes passa despercebido no catálogo do Fugazi. Um erro. Primeiro álbum de estúdio que contou com a produção integral do quarteto de Washington, o registro talvez seja o mais esparso da discografia da banda, mas não menos interessante. Do momento em que tem início, em Exit Only, passando pela urgência de Reclamation, Latin Roots e o parcial recolhimento de Long Division, cada fragmento do disco chama a atenção pelo esforço do grupo em provar de novas direções criativas, porém, preservando o aspecto provocativo que embala a construção dos versos. São canções ainda ancoradas em temas políticos e a visão pessimista sobre a humanidade, mas que vez ou outra esbarram em questões existenciais e na dificuldade de relacionamento entre os indivíduos. É como um ensaio torto para o que seria explorado de forma ainda mais complexa nos futuros lançamentos do grupo.
#6. End Hits
(1998, Dischord)
Em 1997, quando os integrantes do Fugazi entraram em estúdio para as gravações de End Hits, o grupo estava exausto. Depois da extensa turnê de divulgação de Red Medicine (1995), que contou com mais de 170 apresentações ao redor do mundo, o quarteto decidiu seguir uma abordagem talvez contida quanto próxima dos antigos trabalhos, mas não menos provocativa. Inaugurado por Break, uma das canções mais queridas do público, o registro segue entre momentos de maior calmaria e caos. Enquanto músicas como Place Position trazem de volta a urgência da banda de Washington, outras como No Surprise e a delirante Pink Frosty, destacam o esforço dos próprios integrantes em transitar por entre estilos e brincar com as possibilidades dentro de estúdio. A própria Floating Boy, com quase seis minutos de duração, funciona como uma boa representação de tudo aquilo que o grupo busca desenvolver ao longo da obra. Mesmo com recepções mistas por parte da crítica, o álbum teve bom desempenho comercial e, ao longo dos últimos anos, acabou se transformando em uma das obras mais cultuadas da banda. Contrário ao título estampado na imagem de capa, o Fugazi ainda tinha algumas surpresas a oferecer.
#5. 13 Songs
(1989, Dischord)
Muito embora Repeater (1990) seja o primeiro álbum de estúdio do Fugazi, foi com o lançamento da coletânea 13 Songs, um ano antes, que o grupo norte-americano foi oficialmente apresentado ao público. Concebido a partir de canções produzidas para os dois primeiros EPs de inéditas da banda — Fugazi (1988) e Margin Walker (1989) —, o trabalho entregue em setembro de 1989 sintetiza com naturalidade a força criativa, versatilidade e principal desejo do guitarrista Ian MacKaye: produzir algo próximo do The Stooges, porém, flertando com o reggae. Prova disso está na música de abertura do trabalho, Waiting Room, preciosidade que ganha forma a partir da linha de baixo de Joe Lally e a bateria sempre firme de Brendan Canty. Intensa, a criação ainda aponta a direção seguida pela banda em composições como Bad Mouth, Suggestion e todo o rico repertório que abastece o material. São estruturas pouco convencionais que se completam com o canto ora declamado, ora berrado de MacKaye e do também vocalista Guy Picciotto. Um misto de passado e presente, mas que viria a orientar de forma bastante expressiva o futuro do Fugazi.
#4. In On The Kill Taker
(1993, Dischord)
Inicialmente pensado como EP, In On The Kill Taker teria produção assinada por Steve Albini (Pixies, The Jesus Lizard), porém, acabou crescendo em estúdio e, por conta da insatisfação da banda em relação ao material original, foi inteiramente regravado junto do velho colaborador, Ted Niceley. E o resultado não poderia ser melhor. Enquanto os versos destacam a poesia política e o olhar atento de Ian Mackaye e Guy Picciotto sobre a nossa sociedade, musicalmente o grupo se aprofunda na construção de um repertório cada vez mais experimental, torto e urgente. Exemplo disso fica bastante evidente em Smallpox Champion, música que trata sobre o genocídio cometido contra os povos originários das Américas, mas que vai de encontro ao mesmo território criativo de Sonic Youth e outros nomes barulhentos do mesmo período. Surgem ainda canções como a ensandecida Rend It, Public Witness Program e Cassavetes, essa última, uma crítica ácida à cultura de Hollywood e homenagem ao ator/diretor John Cassavetes. Recebido de forma positiva pelo público e imprensa da época, In On The Kill Taker seria o primeiro trabalho da banda a figurar no Top 200 da Billboard, fazendo com que o grupo migrasse de palcos apertados para casas de shows e arenas cada vez maiores.
#3. Repeater
(1990, Dischord)
Entregue ao público um ano antes da mudança de paradigma que seria estimulada pelo Nirvana com a chegada de Nevermind (1991), Repeater não apenas apresenta oficialmente o Fugazi, como captura o espírito caótico da época em que foi gravado. Primeiro registro com a participação ativa dos quatro integrantes, o trabalho segue a trilha da coletânea que o antecede, porém, destaca a potência e dinamismo do grupo durante toda a execução do material. Não por acaso, o quarteto assina parte da produção do disco em parceria com Ted Niceley, com quem já havia colaborado anteriormente. O resultado desse processo, que mais uma vez conta com o suporte do engenheiro de som Don Zientara, está na entrega de um repertório consistente, intenso e bem direcionado, mas que a todo momento utiliza da imprevisibilidade para capturar a atenção do ouvinte, conceito reforçado na instrumental Brendan #1. Entretanto, sobrevive na construção dos versos a grande força do álbum. São canções como Merchandise e Blueprint que mais uma vez destacam o forte discurso político da banda, explorando temas como anti-consumismo, vício em drogas e violência, marca da própria faixa-título. Composições montadas a partir de cenas e acontecimentos do cotidiano, direcionamento que viria a ser ampliado pelos próximos anos. O Fugazi estava apenas começando, mas já tinha muito a dizer.
#2. Red Medicine
(1995, Dischord)
Desde o início dos anos 1990, o Fugazi vinha sendo assediado por diferentes gravadoras que passaram a oferecer contratos milionários ao grupo. E isso se intensificou após a repercussão de In On The Kill Taker (1993). O próprio Ahmet Ertegun, então presidente da Atlantic Records, apareceu durante a turnê de divulgação do álbum e ofereceu um contrato de dez milhões de dólares e tudo mais que a banda quisesse para fechar um acordo. O quarteto recusou e logo partiu para as gravações de um de seus trabalhos mais complexos: Red Medicine. Inaugurado em meio a camadas de ruídos, o registro mais uma vez destaca o esforço do grupo em tensionar os limites da própria obra. Exemplo disso fica bastante evidente nos improvisos de Combination Lock, a lenta sobreposição de elementos em By You e o diálogo com o dub na delirante Version. São estruturas dissonantes, quebras e momentos de maior corrupção estética. Nada que impossibilite a construção de faixas como as emergenciais Bed for the Scraping e Latest Disgrace. Embora marcado pelo forte experimentalismo, Red Medicine viria a se transformar no maior sucesso comercial da carreira da banda, alcançando outra posição de destaque no Top 200 da Billboard e garantindo ao quarteto uma extensa turnê com mais de 170 apresentações.
#1. The Argument
(2001, Dischord)
Oficialmente, o Fugazi nunca encerrou suas atividades. Os próprios integrantes já afirmaram em entrevistas que costumam se encontrar e tocar juntos com certa regularidade. Porém, a chance de um novo trabalho de estúdio ser revelado ao público parece cada vez mais distante. E isso tem um motivo: o derradeiro The Argument é um álbum que dificilmente será superado pelo próprio quarteto. Marcado pela forte integração entre os membros da banda, o registro soa como uma combinação do que há de melhor e mais característico no som produzido pelo Fugazi. São criações multidisciplinares que evocam o propósito original de Ian MacKaye quando o grupo foi formado, mas que a todo momento se permite transitar por entre estilos e diferentes propostas criativas. Da contrastante combinação de elementos que se apodera de Cashout e Life and Limb, passando pelo flerte com o pop em Full Disclosure, música que conta com vozes de apoio de Kathi Wilcox (Bikini Kill), cada composição do disco destaca o amadurecimento e permanente sensação de imprevisibilidade proposta pelo grupo. A própria imagem de capa, uma fotografia do documentarista Jem Cohen, funciona como uma boa representação desse resultado, brincando com a interpretação do público. Um fechamento mais do que consistente para uma banda que sempre jogou com regras próprias e nunca teve medo de arriscar em estúdio.
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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.
Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.