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Crítica

Fiona Apple

: "Fetch the Bolt Cutters"

Ano: 2020

Selo: Epic

Gênero: Rock, Jazz, Art Pop

Para quem gosta de: Joanna Newsom e Tori Amos

Ouça: Cosmonauts, Fetch the Bolt Cutters e Ladies

10
10

Fiona Apple: “Fetch the Bolt Cutters”

Ano: 2020

Selo: Epic

Gênero: Rock, Jazz, Art Pop

Para quem gosta de: Joanna Newsom e Tori Amos

Ouça: Cosmonauts, Fetch the Bolt Cutters e Ladies

/ Por: Cleber Facchi 21/04/2020

Quando foi a última vez que sentimos tamanho impacto com o lançamento de um disco? Na chegada de My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), de Kanye West? Talvez. Quando Beyoncé pegou muita gente de surpresa com o autointitulado registro visual? Pode ser. Nas rimas impressas por Kendrick Lamar, em To Pimp a Butterfly (2015), e Frank Ocean, em Blonde (2016)? Provavelmente. Quinto e mais recente álbum de estúdio da cantora e compositora norte-americana Fiona Apple, Fetch the Bolt Cutters (2020, Epic) é, como esses e outros trabalhos importantes que surgiram na última década, um registro que já nasce clássico. Impactante do primeiro ao último verso, a obra encontra na força dos sentimentos detalhados pela pianista estadunidense a base para uma seleção de faixas que alterna entre o desequilíbrio pessoal e a permanente busca por autoaceitação.

Sequência ao doloroso The Idler Wheel Is Wiser than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More than Ropes Will Ever Do (2012), um dos registros mais viscerais que surgiram na última década, Fetch the Bolt Cutters cresce como um produto das experiências, conflitos intimistas e traumas acumulados pela cantora nova-iorquina desde a estreia com Tidal (1996). “Eu sou a mulher que quer que você ganhe / E eu estava esperando / Esperando você para me amar“, canta para si mesma, em I Want You to Love Me, faixa que aponta a direção seguida até o último instante da obra, em On I Go. São composições de essência caótica, sempre autobiográficas, conceito reforçado logo nos primeiros minutos do disco, em Shameika, faixa em que parte da agressão sofrida na infância como estímulo para uma série de desajustes na vida adulta – “Shameika não era gentil e ela não era minha amiga, mas / Ela chegou até mim e nunca mais a verei … Shameika disse que eu tinha potencial“.

Entretanto, como o título do registro aponta, “pegue os alicates“, em uma confessa citação à fala da personagem interpretada por Gillian Anderson, no seriadoThe Fall, trata-se de uma obra sobre fazer as pazes com o próprio passado, silenciar demônios interiores e seguir em frente, independente do que quer que aconteça. “É sobre sair de qualquer prisão em que você se permitiu viver. Se você construiu essa prisão para si mesma ou se foi construída à sua volta e você simplesmente a aceitou. A mensagem em todo o registro é apenas: ‘pegue a porra dos alicates e saia da situação em que você está’“, respondeu em uma extensa entrevista à Vulture. O resultado desse forte comprometimento lírico está na entrega de um trabalho que preserva a essência do álbum anterior, porém, se permite avançar criativamente, parecendo maior do que qualquer outro disco lançado por Apple.

Parte desse resultado e força na composição dos versos vem da forma como o próprio trabalho foi concebido. Longe dos grandes estúdios, a cantora convidou a percussionista Amy Aileen Wood, co-produtora do disco, o baixista Sebastian Steinberg e o multi-instrumentista Davíd Garza, para uma série de sessões em um estúdio improvisado dentro da própria casa. No lugar de instrumentos convencionais, talheres, mesas, cadeiras e outros objetos ao alcance do grupo. Mesmo o latido dos cachorros de Apple, como nos minutos iniciais de Newspaper e da faixa-título, se transformam em um importante componente criativo para o crescimento da obra. Instantes em que a artista convida o ouvinte a mergulhar no próprio universo particular, reforçando o aspecto intimista que serve de sustento ao disco.

É justamente essa ausência de polidez e permanente imprevisibilidade que torna a experiência de ouvir Fetch The Blod Cutters tão satisfatória. São faixas que encolhem e crescem a todo instante, se espalham em meio a fragmentos minimalistas ou simplesmente tratam da voz de Apple como um precioso instrumento. Exemplo disso está na montagem de Ladies, canção em que discute o peso do machismo e rivalidade feminina em meio a um turbulento exercício criativo que muda de direção sem ordem aparente. A mesma crueza acaba se refletindo em Newspaper, música de essência catártica que soa como um encontro entre Tom Waits e Nina Simone. Mesmo Cosmonauts, com suas incontáveis camadas melódicas e guitarras complementares, parece pensada para jogar com a interpretação do público. “Você e eu seremos como cosmonautas / Exceto com muito mais gravidade do que quando começamos“, confessa enquanto vozes orquestrais, ruídos e a percussão sempre destacada cobre toda a superfície da faixa, ampliando tudo aquilo que Apple havia testado décadas antes, no também provocativo When the Pawn…(1999).

Libertador, Fetch the Bolt Cutters talvez seja o primeiro trabalho em que a pianista parece realmente à vontade para tratar sobre os próprios sentimentos, dores e inquietações. Concebido e lançado em uma medida própria de tempo, foram necessários cinco anos e diferentes sessões até o disco ser finalizado, o sucessor de The Idler Wheel… evidencia a imagem de uma artista em pleno domínio da própria obra, como se cada componente torto ou fragmento de voz fosse cuidadosamente encaixado pela musicista. Longe do verniz comercial imposto pela gravadora em alguns de seus principais lançamentos, como Extraordinary Machine (2005), Apple entrega ao público um álbum dotado de linguagem própria, proposta que não apenas perverte tudo aquilo que a cantora havia testado anteriormente, como serve de comparativo para qualquer outro registro que possa surgir nos próximos anos.



Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.