Por: Cleber Facchi
Fotos: Carol Ribeiro e Kbça Cornetti
Embora donos de uma tríade de trabalhos tomados pelo lirismo e boas doses de viagens instrumentais, os paulistanos Gabriel Mattos (26), Danilo Sevali (28) e Diogo Menichelli (28) alcançam só agora sua maturidade musical, lançando um disco que embora curto, se evidencia como um dos mais impactantes álbuns de 2011, o excêntrico Transe Só EP. Se preparando para o lançamento em formato físico do novo trabalho, a banda tirou um tempo para responder nossas perguntas, falando sobre como é trabalhar com música experimental no Brasil, a ligação com a psicodelia dos anos 60 e até de onde vem o termo que dá nome ao grupo.
Antes (no primeiro EP, Asucar-çugar de 2006) a banda tinha uma pegada muito mais voltada ao post-hardcore e ao rock alternativo da década de 90, algo que em determinados momentos lembrava muito o que a Gigante Animal ou demais bandas do gênero exploravam em seus trabalhos. O que trouxe essa mudança tão latente como a que pode ser percebida nos dois trabalhos seguintes – Crise de Creize (2009) e Adubado (2009) – e que se intensifica ainda mais agora com o último EP?
Em 2006 a banda funcionava como um quarteto, nessa formação inicial contávamos com mais um guitarrista que também soltava a voz ao meu lado, o Felipe Lima. Era um minucioso trabalho para ambas as cordas (vocais e as de aço/níquel) trabalhando texturas e climas para essas que foram nossas primeiras composições. Longas tardes fechados e embriagados pelo calor das válvulas, dentro de um quartinho improvisado para os tais ensaios. Um momento de transição delicado para todos nós, cada um carregando suas marcadas experiências de antigas bandas, todas de sonoridade bastante diferente, sintetizadas nesse encontro que resultou no Asucar-Çugar. Mais do que a influência dos artistas e músicas que nos norteavam em tal época, o grande barato era mesmo nossa vivência, as viagens para shows, os roles de domingo a tarde na Vila Oliveira, o vinho e a praça do Zerinho.
A partir do momento em que nos transformamos num trio, com a saída do Felipe, da-lhe mudança, da-lhe reencontrar o nosso som e naturalmente moldamos nossa sonoridade para isso que é observado nos posteriores trabalhos Adubado/Crise/Transe. São três álbuns lançados em momentos diferentes, porém gravados numa só sessão, que levou prazerosos três meses dentro do estúdio Machine Action, com supervisão técnica e produção de Hugo Falcão (ex-Shed, ex-Ludovic) e que em determinado momento assumiu as baquetas do Hierofante, substituindo o Diogo, que foi viver uma experiência fora do Brasil durante um ano. Impossível explicar as mudanças, pois tudo rola com a gente de uma maneira muito simples, intuitiva, descompromissada com padrões ou convenções. Nosso compromisso é com a harmonia que começa antes de plugarmos os cabos nos amplificadores, e a partir do momento que os volumes sobem e tomam conta do recinto, a evolução e a fluidez fazem muito mais sentido, e tá criado, tudo acontece, sem regra.
Como funciona o método de composição das canções dentro da banda, já que, principalmente quando observamos o último EP vê-se que as criações não ficam centradas em um único membro? A forma de criar é conjunta ou fragmentada, com cada integrante trazendo pequenas doses do que mais tarde se transforma nas faixas?
De verdade não existe um método único… funciona na maioria das vezes de forma fragmentada. Pode ser um arranjo de guitarra, piano, um trecho de um livro, um filme ou outra música, diga-se de passagem lançamos um vídeo pela Trama Virtual onde o piano está muito presente e cada vez mais vivo em nossas novas composições.
Em relação aos três EP’s anteriores Transe Só é o álbum mais experimental e viajado da banda, beirando o onírico e alcançando o lisérgico em longos trechos, principalmente no quesito instrumental do registro. Aonde, em que elementos ou em que substâncias vocês foram buscar a matéria-prima para esse novo trabalho?
A gente pira muito em banda instrumental, em banda psicodélica, contemporâneas ou clássicas, ouvimos até gastar o disco, pesquisamos material em vídeo, filme, assistimos com prazer e devoção todo e qualquer registro que possa vir de encontro a essa temática estética e sonora. A partir desse processo procuramos fechar os olhos e tocar, explorando esse amor que temos pela música, pela arte, ou o amor que sentimos uns pelos outros, pelos amigos que incentivam, pelos entusiastas que apoiam, pelas bandas-irmâs que encontramos pela estrada, que compactuam desse ideal libertário que é ser um artista independente no Brasil. Musicalidade é tudo, balanço, groove, pegada, entrega, leveza e liberdade, essa é a origem da nossa matéria, nossa dolorosa e constante evolução.
No exterior há um panorama relevante em relação a discos e projetos de música experimental, trabalhos como Merriweather Post Pavillion (Animal Collective), Veckatimest (Grizzly Bear), Odd Blood (Yeasayer), ou mesmo todo o cenário europeu composto pelos lançamentos do Radiohead e da Bjork, por exemplo, conseguem e tem acesso a uma estrutura e um público muito maiores, mas o mesmo não acontece no Brasil, sendo que só de três anos pra cá o efeito começou a se estender em terras tupiniquins. É difícil pra vocês, donos de um som peculiar, se apresentarem para um público leigo, ou a intenção da banda é a de se fixar aos nichos? Como é ser um grupo rotulado de “experimental” na terra do samba, do sertanejo e da música pop sem-vergonha?
A intenção não é se fixar e sim aglutinar (transformar) toda e qualquer experiência relacionada à música que assim nos propomos a realizar, naturalmente ou alegremente oferecendo nossas faces aos julgamentos que rotulam, desaglutinam e nos dissolvem. É nosso velho mau hábito de falsa aceitação por compreensão preguiçosa, se não te entendem, seja por limitação pessoal, cultural ou por pura postura blasé, não te aceitam, e o pior, repudiam. Fixar-se a nichos é limitar essa experiência, mas é assim que a Industria Cultural e o Mercado sobrevivem, explorando ao esgotamento os nichos e como se esgota fácil a tal música pop e seus lixos rentáveis. Urras e mais urras aos caça-talentos por produzir tamanha massa podre com gosto de pastel gorduroso. O grande lance é que ta todo mundo ai, com fome de tudo, e é essa fome que nos movimenta e incentiva, pois existe sim uma firme e resistente-esperança-concreta-real de pessoas tortas, marginais não inseridos que experimentam sem medo, ilimitados pensadores, compositores, escritores, lucidamente loucos e com vida no seu criar, no seu tocar e que não vivem (infelizmente) da sua arte mas que vivem (felizmente) pela sua arte. Assim vivemos (no país do samba e dos Baurets) e podemos experimentar! Assim analisamos o cenário mundial dessa música que não é de fácil acesso e propõe novos limites ou mesmo o rompimento deles ao perceber que somos todos seres humanos apenas separados por mares e montanhas e terra. Se é possivel que um incerto numero de pessoas, espalhadas por esse mundo todo, possam com refinamento e categoria apreciar uma música que não é imposta, que é valorizada exatamente por ser diferente, questionadora, transformadora, me sinto sim motivado em continuar trilhando qual for o caminho que nossa música possa nos levar e que possamos levar ela mesma a esses ouvidos, estejam aonde estiver. Independente de tudo a gente vai continuar tocando, empurrando, jogando pro alto, que seja enfiando pela goela abaixo da molecada, não é assim que a Indústria faz com a Pitty, Luan Santana e outros tantos? Então prove dessa doce psicodelia orgulhosamente brasileira. Experiencie, viva.
Sempre que leio alguma coisa relacionada ao trabalho de vocês surgem rótulos como “vanguardistas”, “excêntricos” e demais aplicações que tentam colocar a banda à frente de seu tempo. Sem desmerecer o trabalho do trio, mas vocês não acham que o país conta com uma memória musical muito fraca, afinal, muito do que é explorado dentro das sonoridades da Hierofante vem do que Arnaldo Baptista e os Mutantes, além do que toda a turma da tropicália construiu há mais de quarenta anos?
Referenciar o trabalho do Hierofante com artistas como Arnaldo Baptista (Mutantes) é algo que nos orgulho muito… o rótulo “vanguardista” não funciona muito,porque nunca tivemos a intenção de nos prender nesse conceito, temos muitas influencias… a maior preocupação (não sei bem se seria essa a palavra correta) é tentar ser novo, original e aí talvez pode soar um pouco excêntrico.
Em breve vocês lançarão uma “coletânea” com um agrupamento dos três últimos trabalhos da banda, teria como vocês explicarem como será esse formato e se desse agregado de faixas o público terá acesso a algum conteúdo novo?
O disco chama-se Transe Só e lançamos ele de duas formas: uma virtual onde são 4 músicas e um belo projeto gráfico e dia dez de junho (na Serralheria em São Paulo, com a banda Alarde) lançaremos a versão física onde serão 12 músicas (com o EP Adubado mais o EP Crise de Creize) e mais alguma surpresa no meio. O disco tem um lançamento em conjunto com o selo Transfusão Noise Records do saudoso Lê Almeida, o diferencial será o tamanho da arte que será em tamanho vinil mas o disco em si será CD.
Como rolou a aproximação com o Renan Cruz, responsável pela arte do novo disco? A estética partiu toda dele, aconteceu de forma livre, ou o grupo deu alguns apontamentos, afinal, além de belo o encarte e a capa do álbum se encaixam perfeitamente com a temática proposta pela banda dentro de Transe Só.
A aproximação com o Renan é desde os tempos de colegial quando ele e o Gabriel estudaram juntos. Os anos passam e sempre estamos encantados com a infinita capacidade artística desse parceiro. A capa do disco era uma coisa quase pronta, que não foi feita especialmente para o Hierofante, foram colocados os títulos Transe Só e Hierofante Púrpura e na nossa opinião foi um apontamento muito feliz, a parte interna era uma imagem particular que o Renan tinha fotografado e o verso do disco é um Hierofante literalmente com os belos traços do comparsa Renan Cruz. O nome “Transe Só” reflete um momento de transição e conflito, como um olhar para dentro de si, uma busca. Talvez por esse sentido ela tenha casado perfeitamente com a capa do disco em que um personagem aparece meditando.
Além da divulgação do novo álbum, quais são os planos da banda para o restante de 2011?
Os shows estão indo bem, temos muitos planos, muitos desejos, um dos maiores é o lançamento do DVD com nossos amigos do Ini (Sorocaba) sobre as intervenções com os Geradores, estamos num momento de novas composições, também pretendemos entrar em estúdio esse ano para um disco de músicas inéditas, as idéias não param de borbulhar. Ah! E os vídeos/clipes/docs continuarão aparecendo.
A pergunta é clichê e vocês devem estar cansados de responder, mas o que quer dizer ou de onde partiu o nome “Hierofante Púrpura”?
Eu adoro responder essa pergunta, é algo curioso. É um nome de origem Grega “ίεροφαντης” e possui diversas interpretações e definições significativas, tal como “o alto demonstrador da sacralidade” provendo da união de dois vocábulos gregos “ίερος” (sagrado, santo) e “φανειν” (mostrar, manifestar, fazer visível, fazer brilhar). Gosto do teor de ocultismo contido nesse nome, e gosto de divagar sobre o tema, me aprofundar, e aí quando eu saio falando (para quem questiona) fica uma miscelânia lisérgica misturada entre o não-entendimento da fonética do nome, tipo: “O quê? Elefante Púrpura? Yellowfante?” com a licença poética de se re-inventar nomes para banda tais como “Papa Violeta” e “Celofane Púrpura”, acontece direto, principalmente com os amigos mais próximos. Acho que a Psicodelia toda ja começa exatamente aí, nessa sinestesia toda. Mas todas essas pirações foram agregadas durante os quase 6 anos de existência da banda, porque na realidade o nome surgiu em forma de homenagem aos grandes mestres da música experimental brasileira: João Ricardo, Gérson Conrad e Ney Matogrosso, o power-trio mais conhecido como Secos e Molhados, que revolucionou a música popular brasileira durante os anos de Chumbo no Brasil. No seu segundo álbum Secos e Molhados II lançado em 1974, consta uma faixa com o nome O Hierofante, maravilhosa canção, arranjos e guitarras rasgantes, vocal uivado e enraivecido de Ney, numa temática meio Hard meio Prog, paulada mesmo. A letra é de um poema homônimo de Oswald de Andrade, que diz assim:
Não há possibilidade de viver
Com essa gente
Nem com nenhuma gente
A desconfiança te cercará como um escudo
Pinta o escaravelho
De vermelho
E tinge os rumos da madrugada
Virão de longe as multidões suspirosas
Escutar o bezerro plangente
Enfim é essa loucura toda ai. Escutem essa música. Escutem o Hierofante Púrpura interior. Revele-se para você mesmo, se permita, sem sentir, sem saber, só gozar.
Gosto, mas tenho vergonha de assumir: que música/artista te causa constrangimentos, mas você não consegue parar de escutar?
Podemos citar três artistas que não conseguimos parar de escutar, porém temos vergonha da fase atual de cada um deles: Ronie Von, Rita Lee e Ney Matogrosso, por motivos bem óbvios né?
Se pudesse convidar algum ídolo para gravar ou se apresentar ao lado do Hierofante, quem seria?
Com certeza seria o Arnaldo Baptista, um grande mestre pra nós.
Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.
Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.