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Crítica

Amaro Freitas

: "Sankofa"

Ano: 2021

Selo: Far Out Recordings

Gênero: Jazz, Instrumental

Para quem gosta de: Jonathan Ferr e Zé Manoel

Ouça: Sankofa, Baquaqua e Ayeye

9.0
9.0

Amaro Freitas: “Sankofa”

Ano: 2021

Selo: Far Out Recordings

Gênero: Jazz, Instrumental

Para quem gosta de: Jonathan Ferr e Zé Manoel

Ouça: Sankofa, Baquaqua e Ayeye

/ Por: Cleber Facchi 01/07/2021

Voltar ao passado para ressignificar o presente e pavimentar o caminho para o futuro. Esse parece ser o principal direcionamento criativo de Amaro Freitas em Sankofa (2021, Far Out Recordings). Com título inspirado pelo pássaro místico que anda com a cabeça voltada para trás, típico dos símbolos ideográficos dos povos de Gana e Costa do Marfim, na África Ocidental, o registro marcado pela pluralidade de ideias costura séculos de referências e temas ancestrais, porém, partindo de uma linguagem essencialmente atualizada. Instantes em que o pianista recifense confessa algumas de suas principais inspirações, transita por entre ritmos e potencializa de forma ainda mais sensível e detalhista tudo aquilo que havia testado nos antecessores Sangue Negro (2016) e Rasif (2018).

E isso fica bastante evidente logo nos primeiros minutos do álbum, na introdutória faixa-título. Mais uma vez acompanhado pelos músicos Jean Elton (Contrabaixo) e Hugo Medeiros (Bateria), com quem tem colaborado desde o início da carreira, Freitas entrega ao público uma composição que se revela em uma medida própria de tempo, sem pressa, detalhando incontáveis camadas instrumentais, curvas e quebras rítmicas que vão do jazz de Thelonious Monk ao uso de temas ritualísticos. É como se o pianista apresentasse parte das regras que serão exploradas e consequentemente quebradas ao longo do registro. Um ziguezaguear de ideias que ganha ainda mais destaque na canção seguinte, a ensolarada Ayeye, precioso exercício criativo que evoca o neo-soul de nomes como D’Angelo e Erykah Badu, porém, pontuada pela mesma força rítmica e versatilidade de artistas como The Roots.

Nada que se compare ao material entregue em Baquaqua. São pouco mais de quatro minutos em que os pianos de Freitas passeiam livremente pelo interior da faixa, sempre acompanhados pela bateria versátil de Medeiros e baixo destacado de Elton. É como se o trio resgatasse tudo aquilo que foi apresentado durante o lançamento do registro anterior, porém, partindo de uma abordagem essencialmente abrasiva, estrutura potencializada no bloco central da canção, quando pequenos atravessamentos rítmicos tingem com incerteza a experiência do ouvinte. Um turbilhão criativo que segue até a atmosférica Vila Bela, música batizada com o nome de uma área próxima à fronteira com a Bolívia, na região de Mato Grosso, onde Tereza de Benguela, líder quilombola do século XVIII, liderou por mais de duas décadas uma comunidade negra e indígena de resistência à escravidão.

Nesse sentido, Sankofa deixa de ser apenas um minucioso exercício instrumental para incorporar debates raciais, inquietações e referências históricas, mesmo na completa ausência de palavras. “Trabalhei para tentar entender meus ancestrais, meu lugar, minha história como homem negro. A história dos povos originários, das diversas etnias que ocuparam este território, de como somos plurais. O Brasil não nos disse a verdade sobre o Brasil“, comentou no texto de apresentação do trabalho. E esse fundo temático fica ainda mais evidente na segunda metade do disco, quando a parcial serenidade que orienta o bloco inicial esbarra em um verdadeiro turbilhão criativo. São estruturas pouco convencionais e elementos percussivos que buscam tensionar os pianos de Freitas.

Exemplo disso acontece na sequência composta por Cazumbá e Batucada. Pouco mais de dez minutos em que o trio parece testar criativamente os próprios limites. São variações instrumentais e rítmicas que encolhem e crescem a todo segundo, jogando com a interpretação do público. É como um ensaio para o material que chega minutos à frente, na turbulenta Malakoff. Regida em essência pela bateria de Medeiros, a faixa rapidamente se transforma em um campo aberto para os pianos inexatos e improvisos de Freitas. Instantes em que o músico transporta para dentro de estúdio a mesma euforia e experimentações notáveis nas apresentações ao vivo. Formas ascendentes, ruídos e momentos de breve silenciamento que rompem com todo e qualquer traço de conforto.

Passado esse momento de maior euforia, Freitas revela ao público Nascimento. Confessa homenagem ao cantor e compositor Milton Nascimento, com quem o músico trabalhou no colaborativo Existe Amor (2020), a canção segue um caminho oposto não apenas em relação ao material entregue no restante da obra, como em comparação à recente criação de mesmo nome apresentada pelo também pianista Jonathan Ferr, em Cura (2021). São pinceladas instrumentais e momentos de maior calmaria que parecem envolver o ouvinte em uma medida própria de tempo. Pianos e inserções minimalistas que ora proporcionam ao registro um necessário respiro criativo, ora resgatam a atmosfera doce e evidente sutileza impressa nos dois primeiros discos do pernambucano. Um misto de passado e presente, mas que a todo momento deixa o caminho aberto para os futuros lançamentos do artista.

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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.