Os 50 Melhores Discos Brasileiros de 2022

/ Por: Cleber Facchi 19/12/2022

No primeiro ano de abertura pós-pandemia de Covid-19, com o acesso a shows e festivais totalmente liberado, não foram poucos os artistas brasileiros que surpreenderam com seus trabalhos. Desde o início do ano, nomes como Baco Exu Do Blues, Urias e Fernando Catatau elevaram a barra e apontaram a direção para uma série de obras que viriam a ser apresentadas pelos próximos meses, vide os registros de artistas como Tulipa Ruiz, Xênia França, Criolo e Alaíde Costa. Um período bastante movimentado que chegou até o mês de dezembro, como nos recentes lançamentos de Anelis Assumpção e Fabiano do Nascimento. Em uma tentativa de organizar tudo aquilo que foi revelado nos últimos doze meses, trago uma seleção com os 50 Melhores Discos Brasileiros de 2022.


#50. Urias
Fúria (2022, Mataderos)

Os sentimentos movem as composições de Urias em Fúria. Primeiro trabalho de estúdio da cantora e compositora mineira, o registro que se divide entre o canto e a rima potencializa de maneira natural tudo aquilo que tem sido explorado desde o homônimo EP entregue há três anos. São canções que encolhem e crescem a todo instante, transitando por entre estilos e temáticas de forma sempre provocativa, forte. Uma intensa combinação de elementos que vai da construção das letras ao minucioso encaixe das batidas e fotografia de capa, bem representada pela imagem de um touro domado pela própria artista. “Dou passos sólidos na escuridão / Faro aguçado, uma faca na mão / Eu, eu, eu quero tudo, eu quero agora“, dispara logo nos primeiros minutos do disco, na rima crua de Pode Mandar, música que sintetiza parte das experiências exploradas até a canção de encerramento do registro, Tanto Faz. São criações autobiográficas que falam sobre desafios, medos e conquistas vividas pela artista de Uberlândia, porém, de maneira sóbria, estreitando a relação com o ouvinte mesmo nos momentos mais pessoais do trabalho.“Perto do que eu mereço, o que eu peço não é nada / Depois de sofrer essa violência organizada“, completa minutos à frente. Leia o texto completo.


#49. Adriano Cintra
O Palhaço (2022, Independente)

Desde que deu vida ao primeiro álbum em carreira solo, Animal (2014), Adriano Cintra tem investido na produção de um repertório marcado pelo uso de pequenos contrastes. Enquanto a base de boa parte das canções convida o ouvinte a dançar, efeito direto do uso destacado das batidas e sintetizadores nostálgicos que evocam as criações do multi-instrumentista paulistano no Cansei de Ser Sexy, em se tratando dos versos, Cintra, que já colaborou com nomes como Marcelo Jeneci, Bruna Mendez e Tom Zé, se aprofunda em conflitos sentimentais. São composições marcadas pela dor e momentos de maior vulnerabilidade. Mais recente lançamento de Cintra em carreira solo, O Palhaço é um bom exemplo desse resultado. Primeiro registro de inéditas produzido pelo cantor desde o repertório apresentado em Nine Times (2017), o trabalho concentra o que há de melhor e mais doloroso nas criações do artista. São canções que apontam para um passado ainda recente, fresco, mas que parecem pensadas para dialogar com todo e qualquer ouvinte. Um delicado exercício de entrega sentimental, estrutura que ultrapassa os limites dos versos e tende a consumir a fina tapeçaria instrumental tecida pelo músico ao longo da obra. Leia o texto completo.


#48. Luneta Mágica
No Paiz Das Amazonas (2022, Bananada)

Selva e concreto, calmaria e caos, sobriedade e delírio. Os contrastes estão por toda parte nas canções de No Paiz das Amazonas. Terceiro e mais recente trabalho de estúdio do grupo manauara Luneta Mágica, o sucessor de No Meu Peito (2015) não apenas perverte o pop rock acessível do registro que o antecede, como amplia consideravelmente a essência psicodélica que tem sido explorada desde o introdutório Amanhã Vai Ser o Melhor Dia Da Sua Vida (2012). São composições nascidas da sobreposição de ideias, diferentes ritmos e referências, conceito que dialoga com a própria imagem de capa do disco. De essência conceitual, o trabalho que discute a relação entre a metrópole manauara e a floresta no entorno faz de cada composição um objeto precioso, a ser desvendado pelo ouvinte. E isso fica bastante evidente logo na introdutória faixa-título. São pouco mais de seis minutos em que a banda formada por Erick Omena, Eron Oliveira, Daniel Freire, Pablo Araújo e Victor Neves parte de um trecho orquestrado de Canto de Amor e Paz, do compositor amazonense Cláudio Santoro, para mergulhar em um ambiente de emanações psicodélicas e momentos de maior experimentação, estímulo para o restante do álbum. Leia o texto completo.


#47. Brvnks
Meet The Terrible (2022, Independente)

É difícil não se identificar com as canções de Bruna Guimarães, a Brvnks, em Meet The Terrible. Sequência ao material entregue pela cantora e compositora goiana em Morri de Raiva (2019), o novo disco preserva o caráter confessional do registro que o antecede, porém, utiliza de uma linguagem essencialmente ampla, capaz de dialogar de forma cada vez mais sensível com as dores e inquietações compartilhadas qualquer indivíduo na vida adulta. São composições que tratam sobre a permanente sensação de fracasso e crises de ansiedade que antecedem momentos de breve celebração. “Meu terapeuta acabou de dizer / Que eu deveria ter esperado / Que nada é tão ruim / É apenas o meu ‘e se’“, detalha na introdutória Ok, This Is Hard, música que segue de onde Guimarães parou no disco anterior e ainda aponta a direção seguida no restante da obra. São momentos de maior vulnerabilidade e evidente entrega emocional. Mesmo quando celebra o amor, como na cantarolável Happy Together, há sempre um fino toque de desconfiança, como um mergulho na mente inquieta da própria artista. Instantes em que a cantora goiana transita em meio a memórias de um passado ainda recente, dores e pequenas reflexões. Leia o texto completo.


#46. Fernando Motta / Jonathan Tadeu / Vitor Brauer
Quebra Asa (2022, Geração Perdida)

Três dos nomes mais interessantes (e barulhentos) da cena mineira estão juntos no colaborativo Quebra Asa. Produto da parceria entre Fernando Motta, Jonathan Tadeu e Vitor Brauer (Lupe de Lupe), o trabalho encarado como uma “plataforma colaborativa” entre músicos da Geração Perdida de Minas Gerais concentra o que há de mais caótico no som incorporado por cada colaborador. “As únicas regras eram: seríamos uma banda de rock, as músicas teriam energia e tentaríamos fugir um pouco do que cada um faz na sua carreira solo“, resumiu Motta no texto de apresentação do registro. E isso fica bastante evidente logo nos minutos iniciais do álbum, em Peso Morto. Partindo de uma base contida, a faixa pouco a pouco se transforma em um turbilhão instrumental que contrasta pela letra marcada pela sensibilidade dos temas. “Não faz do seu ouro um peso morto / Não vá se esconder embaixo desse véu / Somos o oceano“, canta Motta. É como um aquecimento para tudo aquilo que o trio busca desenvolver ao longo da obra, vide a crueza que atravessa o disco na canção seguinte, Lesei, com sua bateria furiosa e guitarras granuladas, sempre ruidosas, como se saídas de album trabalho do Mudhoney. Leia o texto completo.


#45. Zopelar
Charme (2022, Tartelet Records)

Charme, como tudo aquilo que Pedro Zopelar tem produzido em carreira solo, é uma obra feita para causar sensações. Deliciosamente nostálgico e autoral na mesma proporção, o registro de dez faixas soa como uma viagem em direção ao passado. Entre diálogos com a música produzida no Rio de Janeiro no final da década de 1980, o artista paulistano garante ao público um registro que se revela em pequenas doses, sempre misterioso e contido, mas não menos interessante. Composições que funcionam como uma extensão natural do material entregue nos antecessores Universo (2021) e Mensagem (2021). Com Clara como música de abertura, o produtor que já trabalhou com nomes como L’Homme Statue e Teto Preto, indica parte dos temas que serão explorados ao longo da obra. São camadas de sintetizadores, melodias enevoadas e batidas sempre calculadas, como uma interpretação atmosférica do estilo batizado por DJ Corello há quatro décadas. Composições que mais parecem ocultar do que necessariamente revelar informações, direcionamento reforçado na música seguinte, Shibuya, com sua ambientações e bases orientais que vão de encontro ao mesmo território criativo explorado por diferentes nomes do city pop. Leia o texto completo.


#44. Fabiano Do Nascimento
Rio Bonito (2022, Rings)

Um dos principais traços da obra de Fabiano Do Nascimento sempre foi o reducionismo dos elementos. Utilizando do próprio violão e pequenos acréscimos de percussão, o compositor carioca que hoje reside na cidade de Los Angeles, Califórnia, deu vida a uma seleção de trabalhos marcados pelo minucioso processo de criação. Interessante perceber em Rio Bonito, mais recente lançamento do violonista fluminense, um material que segue a trilha dos registros que o antecedem, evidenciando o refinamento estético de Nascimento, porém, de maneira ampliada e aberta ao diálogo com novos colaboradores. Sequência ao material entregue em Ykytu (2021), trabalho que reflete a melancólica sensação de isolamento vivida por diferentes indivíduos durante o período pandêmico,Rio Bonito é uma obra que celebra reencontros, cresce e transporta o som produzido pelo violonista para um novo e inusitado território criativo. Não por acaso, Nascimento contou com a interferência direta do experiente Itiberê Zwarg, baixista e compositor conhecido pelas criações em colaboração com Hermeto Pascoal, mas que aqui se junta ao filho, o baterista Ajurinã Zwarg, e outros instrumentistas para formar um coletivo de jazz. Leia o texto completo.


#43. Planet Hemp
Jardineiros (2022, Som Livre)

Lançado às vésperas do segundo turno da campanha presidencial entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, Jardineiros, primeiro trabalho de estúdio do Planet Hemp em 22 anos, captura com perfeição o clima de insegurança e caos social que divide o país. Sequência ao material entregue pela banda fluminense em A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000), o registro traz de volta uma série de elementos que apresentaram o grupo no início da década de 1990, como o posicionamento em favor da legalização da maconha e o forte discurso político, porém, adaptados ao presente cenário. Inaugurado por uma frase de Marcelo Yuka (1965 – 2019) extraída de uma entrevista dada ao Mídia Ninja – “Quando o instrumento do medo não funciona, a gente adquire um poder inimaginável” –, Jardineiros diz a que veio logo nos primeiros minutos, na já conhecida Distopia. Acompanhados pelo rapper Criolo, o grupo formado por Marcelo D2, BNegão, Formigão, Pedro Garcia e Nobru, convida o ouvinte a ir à luta enquanto pinta um retrato do atual cenário político do país. “Tá tudo errado, irmão, então pega a visão / Pobre defende rico, empregado, o patrão / Político vira herói, juízes, super heróis / Estão acima das leis, acima de tudo, acima de nós“, cresce a letra da composição, sempre direta e ainda íntima do material produzido nos antigos trabalhos da banda, caso de Usuário (1995) e Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para (1997). Leia o texto completo.


#42. Vauruvã
Por Nós da Ventania (2022, Independente)

O som das ondas nos minutos iniciais deMaresia, música de abertura em Por Nós da Ventania, funciona como um precioso indicativo da fluidez que orienta as criações de Caio Lemos e Bruno Augusto Ribeiro no mais novo álbum do Vauruvã. Livre de possíveis amarras, o sucessor do ainda recente Manso Queimor Dacordado (2021), entregue há poucos meses, convida o ouvinte a se perder em um território marcado pelas possibilidades. São canções que mudam de direção a todo instante, porém, sustentam na construção dos versos um componente de amarra e forte aproximação entre as faixas. Assim como o registro que o antecede, Por Nós da Ventania passeia em meio a paisagens descritivas e temas que tratam sobre o alvorecer da civilização humana. A diferença está na forma como o cenário ao redor parece engolir o indivíduo, revelando a construção de um repertório ainda mais complexo, denso e detalhista. A própria relação com a passagem do tempo e o uso de conceitos existenciais ganha ainda mais destaque ao longo da obra. Canções que começam pequenas, ganham forma e crescem em uma delirante combinação de elementos, como um avanço em relação ao material entregue pela dupla há poucos meses. Leia o texto completo.


#41. Putodiparis
Música da Putaria Brasileira (2022, Independente)

Não espere pelo óbvio ao mergulhar nas canções de Música da Putaria Brasileira. Mais recente criação de Putodiparis, o trabalho de nove faixas mostra a capacidade do artista carioca em jogar com a construção das rimas e uso pouco usual das bases em uma abordagem tão provocativa quanto satírica. São criações que partem de um território criativo há muito explorado por outros nomes do rap nacional, sempre inclinados ao resgate de composições empoeiradas da música popular brasileira, porém, deliciosamente pervertidas pelo bom humor e poesia sacana, muitas vezes explícita, lançada pelo rapper. A exemplo de tudo aquilo que havia testado no disco anterior, de onde vieram músicas como Putaria e a divertida Chico Buarque Interlúdio, Putodiparis se aprofunda na construção de um repertório marcado pelos excessos. Partindo de diferentes identidades criativas, como a de Sr. Armani, o artista detalha noites de sexo envelopadas por marcadas de luxo e cenas sempre descritivas. “Sr. Armani colocou de lado sua calcinha / Ela quer libertinagem, ela pede putaria … Tá querendo se entreter / Ouvindo MPB“, detalha logo nos minutos iniciais, em MPB Intro, faixa que aponta a direção seguida pelo rapper ao longo do trabalho. Leia o texto completo.


#40. MC Tha
Meu Santo É Forte (2022, Elemess)

Em um cenário marcado pelo crescente aumento no número de casos de intolerância contra religiões de matriz africana, muitos deles estimulados por pastores evangélicos neopentecostais, ouvir as canções de Meu Santo É Forte ganha novo significado. Mais recente lançamento da cantora e compositora paulistana MC Tha, o trabalho de cinco faixas segue de onde a artista parou há três anos, durante a apresentação do introdutório Rito de Passá (2019), porém, parte de uma abordagem ainda mais específica, proposta que vai da minuciosa construção das batidas à montagem do repertório afro-religioso. Conhecida pelo trabalho como compositora, a artista que já colaborou com nomes como Emicida e Jaloo, esse último, parceiro de longa data, decidiu seguir por um caminho diferente para o sucessor do álbum que revelou preciosidades como Coração Vagabundo e Comigo Ninguém Pode. São cinco releituras de canções com temática religiosa que integram a obra de Alcione. Um curioso processo criativo que partiu do contato de MC Tha com o repertório da cantora maranhense dentro do terreiro em que frequenta, mas que ganha novo e delicado tratamento no diálogo com o produtor baiano Mahal Pita (Rico Dalasam, BaianaSystem). Leia o texto completo.


#39. Moons
Best Kept Place (2022, Balaclava Records)

De uma elegância inigualável, os integrantes da Moons, banda de Belo Horizonte formado pelos músicos André Travassos (violão, guitarra e voz), Jennifer Souza (violão, guitarra e voz), Bernardo Bauer (baixo e voz), Rodrigo Leite (guitarra e voz), Felipe D’Angelo (sintetizadores e voz) e Pedro Hamdan (bateria e voz), atravessaram a segunda metade última da década em uma sequência de registros marcados pelo refinamento estético e minucioso processo de criação. São trabalhos como Songs of Wood & Fire (2016), Thinking Out Loud (2018) e Dreaming Fully Awake (2019) em que cada mínimo fragmento instrumental e poético assume uma função importante dentro do ambiente à meia-luz proposto pelo grupo mineiro. Dessa forma, ao mergulhar nas canções de Best Kept Secret, quarto e mais recente trabalho de estúdio do sexteto belo-horizontino, é bastante natural esperar por uma possível continuação do som primoroso que tem sido explorado pela banda desde o primeiro registro de inéditas. De fato, bastam os minutos iniciais da introdutória The Will to Change para perceber que está tudo lá. São ambientações acústicas, vozes sempre trabalhadas em uma medida própria de tempo e acréscimos sutis que ganham forma em uma trama sempre reducionista, por vezes discreta, livre de prováveis excessos. Leia o texto completo.


#38. Iara Rennó
Orikí (2022, Independente)

Em meados de 2009, a cantora, compositora, produtora e multi-instrumentista Iara Rennó recebeu um convite do Museu Afro Brasil, localizado na cidade de São Paulo, para produzir uma instalação sonora. Intitulada Oríkì in Corpore, a exposição apresentava 12 obras, cada uma destinada a um orixá diferente, que foi homenageado com uma composição. Partindo desse processo de criação, Rennó deu vida ao álbum Oríkì, registro que permaneceu inédito durante mais de uma década e só foi finalizado após um processo de iniciação no candomblé vivido pela artista há pouco mais de dois anos. De essência ritualística, conceito reforçado logo na introdutória Àgò Mo Júbà Orí Ọkàn Oríkì, completa pela participação do cornetista norte-americano Rob Mazurek, Oríkì parte de um exercício particular de Rennó, porém, cresce no permanente diálogo da artista com diferentes colaboradores. A exemplo de Serena Assumpção, em Ascensão (2016), o registro funciona como um precioso ponto de encontro e criativa combinação de ideias. Canções que começam pequenas, ganham forma e crescem em uma medida própria de tempo, transportando o ouvinte para dentro de um universo mágico, em constante expansão. Leia o texto completo.


#37. Bríi
Corpos Transparentes (2022, Independente)

De todos os registros e diferentes identidades criativas adotadas pelo multi-instrumentista Caio Lemos, Bríi segue como um dos mais interessantes e provocativos. Próximo e ao mesmo tempo distante de tudo aquilo que o músico brasiliense tem explorado como Kaatayra e Vauruvã, o projeto carrega no inusitado diálogo com a produção eletrônica um precioso componente de distanciamento conceitual dos demais trabalhos apresentados pelo artista. São composições essencialmente longas e imersivas, proposta que fica ainda mais evidente no curioso direcionamento adotado em Corpos Transparentes. Sequência ao material entregue pelo artista no ainda recente Sem Propósito (2021), trabalho em que contou com as vozes de Thiago Satyr e Bruno Augusto Ribeiro, o novo disco ganha forma nos pequenos desdobramentos de uma extensa composição que se espalha em um intervalo de quase 40 minutos de duração. Trata-se de uma delicada reflexão de Lemos sobre a morte, conceito que acaba se refletindo não apenas na construção dos versos, sempre consumidos por lembranças dolorosas (“Lamento por não ter vivido mais contigo“), como na densa tapeçaria instrumental que cobre toda a superfície do registro. Leia o texto completo.


#36. Walfredo em Busca da Simbiose
Self (2022, Balaclava Records)

Self é um disco que começa pequeno, cresce e sutilmente transporta o ouvinte para um mundo mágico. Segundo e mais recente trabalho de estúdio de Walfredo em Busca da Simbiose, o álbum estabelece nas inquietações vividas pelo multi-instrumentista, cantor, compositor e produtor Lou Alves um estímulo natural para construção dos versos. São composições que partem das experiências meditativas e delírios lisérgicos detalhados durante o período de isolamento social, como a passagem para um cenário de formas mutáveis, encontros passageiros, memórias e ambientações sempre enevoadas. Não por acaso, ao inaugurar o disco com O Som dos Golfinhos, Alves faz da composição um verdadeiro convite para que o ouvinte mergulhe de cabeça no trabalho. “Eu vou te levar comigo“, reforça. São versos sempre acolhedores, estrutura que dialoga de forma bastante sensível com a fina tapeçaria instrumental que serve de complemento ao registro. Um precioso cruzamento entre guitarras carregadas de efeitos, reverberações nostálgicas e batidas trabalhadas de maneira precisa, refinamento que se completa pela participação dos músicos Anami Fernandes (bateria), Eric Woepl (sintetizadores) e Uiu Lopes (baixo). Leia o texto completo.


#35. NoPorn
Contra Dança (2022, Independente)

Havia um forte senso de descoberta e fino toque de timidez em tudo aquilo que foi entregue pelo NoPorn durante o lançamento do ainda recente Sim (2021). Primeiro registro da parceria entre Liana Padilha e o produtor Lucas Freire, ocupando o espaço antes assumido por Luca Lauri, o trabalho que revelou faixas como Festa no Meu Quarto e Geleia de Morango funciona como um chamado às pistas, porém, de forma essencialmente contida. É como uma fuga lenta do período de confinamento a que fomos submetidos. Um exercício de retomada pós-pandêmico, busca por novas sensações e pequenas rupturas estéticas que se completam agora com o repertório montado pelos dois artistas em Contra Dança. Sequência ao material entregue há poucos meses, o álbum preserva a essência reducionista do registro que o antecede, porém, traz de volta a potência dos antigos trabalhos do NoPorn. Exemplo disso fica bastante evidente na própria faixa-título do disco. Enquanto Freire se concentra na formação das batidas e uso de sintetizadores ruidosos, Padilha se aprofunda na construção de personagens decadentes, cenas e acontecimentos de forma sempre minuciosa e provocativa. “Acho triste a sua alegria / Amigos de foto / Caras sem assunto / #Gratidão / Meu mundo é mais que seu look“, detalha em um misto de canto e rima. Leia o texto completo.


#34. Tatá Aeroplano
Não Dá Pra Agarrar (2022, Independente)

A urgência explícita na introdutória Discrepância, composição de abertura em Não Dá Pra Agarrar, é mais do que suficiente para arremessar o ouvinte para dentro do novo álbum de Tatá Aeroplano. Sequência ao material entregue no denso Delírios Líricos (2020), o trabalho que conta com coprodução de Dustan Gallas, Junior Boca, Bruno Buarque e do próprio artista, potencializa o há de mais insano na obra do cantor e compositor paulista. São canções totalmente alucinadas e existencialistas, como um regresso aos momentos de maior delírio vividos pela Cérebro Eletrônico, antiga banda do músico. Exemplo disso fica ainda mais evidente em Chá Delícia, terceira composição do disco. São pouco menos de quatro minutos em Aeroplano e seus parceiros de estúdio brincam com as possibilidades. “Bebendo um chá delícia / Tomando chá de cadeira / Cortando ondas na praia / Chapando na corredeira“, cresce a letra da canção, como um mantra psicodélico que se completa pela base dançante de sintetizadores, batidas quentes e o saxofone complementar de Márcio Resende. É como um convite a se perder em um universo de pequenos excessos, conceito bastante similar ao repertório apresentado em Vamos Pro Quarto (2013). Leia o texto completo.


#33. BK
Icarus (2022, Gigantes)

Icarus é uma obra de transição. Quarto e mais recente álbum de Abebe Bikala, o BK, o trabalho parte das conquistas pessoais do rapper fluminense para celebrar o próprio passado e apontar a direção para o que ainda está por vir. Como o título indica, trata-se de uma perspectiva atualizada do Mito de Ícaro. Um delicado estudo sobre as ambições, fracassos e permanente busca do artista em escapar de um labirinto emocional e poético que vem sendo desenvolvido desde a estreia com Castelos & Ruínas (2016). Canções que partem de uma abordagem particular e autobiográfica, porém, sempre acessíveis. Embora marcado pela forte homogeneidade, efeito direto da produção de JXNV$ em parte expressiva das canções, Icarus é um trabalho que se divide em dois blocos temáticos bastante característicos. O primeiro deles, inaugurado pela reducionista Luzes, diz respeito ao lado político e consequentemente raivoso do disco, ocupando toda a primeira metade do repertório. A própria Lugar na Mesa, excelente colaboração com L7NNON, funciona como uma boa representação desse resultado. Pouco menos de três minutos em que a dupla discute repressão, crescimento, traumas e transformação pessoal de forma sempre impactante. Leia o texto completo.


#32. Qinhones
Centelha (2022, Lab 344)

De Gilberto Gil à Fernanda Abreu, de Cidinho e Doca a SD9, não são poucos os artistas que encontraram no contrastante cenário do Rio de Janeiro uma importante fonte de inspiração para seus trabalhos. São composições ou mesmo obras inteiras que atravessam as belezas naturais da cidade maravilhosa para mergulhar em um território consumido pela violência urbana e desigualdade social. Cria desse ambiente caótico, Marcus Coutinho, o Qinhones, parte dessa abordagem há muito incorporada por diferentes nomes, porém, estabelece nas próprias inquietações um estímulo natural para o repertório de Centelha. Tendo como fagulha criativa dois acontecimentos marcantes que movimentaram a capital fluminense em 2018, o assassinato de Marielle Franco e o incêndio do Museu Nacional, Qinhones parte desse cenário em decadência para abastecer parte expressiva das canções que recheiam o disco. “Como falar de amor / Se estamos em guerra?“, questiona logo nos minutos iniciais, em Cidade Narciso, música que não apenas aponta a direção seguida pelo artista durante toda a execução do material, como justifica o afastamento do compositor em relação aos antigos trabalhos, sempre marcados por temas românticos e letras existenciais. Leia o texto completo.


#31. Rashid
Movimento Rápido Dos Olhos (2022, Sony Music)

O olhar para a cultura asiática sempre foi encarado como parte substancial no processo de criação de diferentes nomes do rap. Está na arquitetura criativa do Wu-Tang Clan, na estética de gigantes como Kanye WestNicki Minaj, e na infinidade de citações a animes como Dragon Ball, Cowboy Bebop e Naruto. Nascido no final dos anos 1980 e criado na década de 1990, Michel Dias Costa, o Rashid, é apenas mais dos inúmeros espectadores que foram bombardeados por estímulos visuais e referências transmitidas pela Terra do Sol Nascente. Um permanente cruzamento de informações que abastece parte expressiva da obra do rapper, mas que alcança melhor resultado em Movimento Rápido Dos Olhos. Conceitualmente inspirado pelos mitos de samurais e a filosofia de Miyamoto Musashi, o disco pontuado por audiodramas dublados por Guilherme Briggs, Adriana Couto e Rodrigo Carneiro adapta para um futuro próximo a história de um espadachim que busca se reerguer contra um tirano nomeado “O Patriarca”. Entre paralelos com a história recente do Brasil governado por Jair Bolsonaro, Rashid detalha a construção de uma narrativa talvez previsível, íntima de outras tantas obras da cultura pop, como Os Sete Samurais (1956), de Akira Kurosawa, mas que sustenta na construção dos versos seu componente central. Leia o texto completo.


#30. Otto
Canicule Sauvage (2022, Condom Black)

É sempre muito difícil prever qual será a direção seguida por Otto a cada novo trabalho de estúdio. E isso é ótimo. Do diálogo com a produção eletrônica, no introdutório Samba pra Burro (1998), passando pelo romantismo empoeirado que toma conta de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009) à inusitada costura de ritmos em The Moon 1111 (2012), sobram momentos em que o cantor, compositor e percussionista pernambucano parece testar os próprios limites. Canções que vão de um canto a outro sem necessariamente perder a consistência, como um passeio torto pela mente inquieta do próprio artista. Curioso perceber em Canicule Sauvage, sétimo e mais recente trabalho de estúdio, um álbum que resgata parte desses elementos incorporados pelo artista em mais de três décadas de carreira. Acompanhado pelo produtor Apollo Nove, com quem colaborou nos primeiros registros autorais, Otto costura passado e presente da própria obra sem fazer disso o estímulo para um exercício revisionista ou minimamente nostálgico. Composições que transitam por entre estilos, ritmos e colaboradores de forma sempre atenta, como uma combinação do que há de melhor nas criações do compositor pernambucano. Leia o texto completo.

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#29. Leila Maria
Ubuntu (2022, Condom Black)

A voz é a primeira coisa que ouvimos em Ubuntu. Imposta de maneira ritualística, por vezes transcendental, é ela quem conduz a experiência do ouvinte durante toda a execução do mais recente álbum de Leila Maria. Perto de completar três décadas de carreira, a carioca de Madureira foi redescoberta durante uma passagem pelo programa The Voice +, em 2021, e, poucos meses mais tarde, desafiada pela diretora artística Ana Basbaum a reinterpretar com liberdade o que talvez seja um dos repertórios mais complexos e inalteráveis da música popular brasileira, as canções do alagoano Djavan. Acompanhada pelo produtor, multi-instrumentista e percussionista carioca Guilherme Kastrup (Elza Soares, Bruno Morais), Leila, que ainda conta com obras de essência jazzística, como Off Key (2004) e Canções De Amor Iguais (2007), utiliza da própria voz como um instrumento em que costura passado e presente, e ainda estreita relações com o continente africano. A própria Soweto como composição de abertura, resgatada do álbum Não É Azul Mas É Mar (1987), funciona como uma boa representação desse resultado. Instantes em que a artista, acompanhada pelo violão do congolês Zola Star, autor da incidental Tobina, destaca o aspecto político do registro e aponta a direção seguida em estúdio até os minutos finais. Leia o texto completo.


#28. Odradek
Liminal (2022, Balaclava Records)

É impossível prever qualquer tipo de movimento assumido pelos integrantes da Odradek em Liminal. Terceiro e mais recente trabalho de estúdio do grupo formado pelos músicos Tomas Gil (baixo), Fabiano Benetton (guitarra) e Caio Gaeta (bateria), o registro transita por entre estilos de forma instável, ainda que cuidadosamente calculada pelos membros da banda. Composições que colidem ideias, ritmos e referências em um ambiente pensado de forma a tensionar a experiência do ouvinte, proposta que acaba se refletindo até os últimos acordes de Segue Anexo (We Don’t Go To Ravenholm). Entretanto, antes de alcançar a composição de encerramento, a jornada proposta pelo trio de Piracicaba reserva boas surpresas. Logo na abertura do trabalho, em Irene Noir, parte expressiva dos elementos que caracterizam o registro são apresentados ao ouvinte de forma bastante eficiente. São guitarras labirínticas, costuras eletrônicas, efeitos e batidas que se entrelaçam em uma abordagem sempre violenta. É como se cada integrante transportasse para dentro de estúdio a mesma urgência explícita nas apresentações ao vivo da banda, inviabilizando possíveis respiros instrumentais ou mesmo momentos de maior calmaria. Leia o texto completo.


#27. Sentidor
Sonho das Flores (2022, La Petite Chambre)

Um movimento tímido do violão, o canto dos pássaros e a lenta sobreposição de ruídos, texturas e formas abstratas. Em um intervalo de poucos minutos, João Carvalho não apenas transporta o ouvinte para dentro do cenário de emanações oníricas de Sonho das Flores, novo registro de inéditas sob o título de Sentidor, como aponta a direção seguida até o fechamento da obra. São delicadas camadas instrumentais, costuras e reprocessamentos digitais que preservam parte dos conceitos apresentados em Breviário dos Pássaros (2019), porém, partindo de uma abordagem ainda mais sensível e detalhista. Exemplo disso fica bastante evidente na segunda composição do disco, Árvore dos Pássaros. São pouco mais de cinco minutos em que o produtor de Belo Horizonte convida o ouvinte a se perder em meio a ambientações etéreas e reverberações cósmicas que mudam de direção a todo instante, sempre de maneira acolhedora. Um lento, porém, permanente desvendar de ideias e sensações. É como uma fuga do material entregue nos antecessores Am_Par_Sis (2017) e Terracorponuvem (2017), em que parecia investir na produção de um repertório denso e sufocante, por vezes marcado pelo uso de componente ritualísticos. Leia o texto completo.


#26. Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz
Moacir De Todos Os Santos (2022, Rocinante)

De Gilberto Gil à Ivete Sangalo, de Larissa Luz a Zé Manoel, não foram poucos os artistas com quem o compositor e arranjador baiano Letieres Leite (1959 – 2021) estreitou relações e contribuiu diretamente em um intervalo de mais de quatro décadas de carreira. Somente no último ano, por exemplo, o músico soteropolitano esteve envolvido em duas importantes obras da cena brasileira. De um lado, o aguardado retorno de Caetano Veloso, com Meu Coco (2021), no outro, a sofisticação de Noturno (2021), último álbum de estúdio de Maria Bethânia, com quem já havia colaborado anteriormente em diferentes espetáculos. Morto em outubro do último ano, em decorrência de uma insuficiência respiratória causada pela Covid-19, o arranjador passou as semanas que antecedem a própria morte imerso na finalização de uma de suas maiores criações, Moacir de Todos os Santos. Mais uma vez acompanhado pela Orkestra Rumpilezz, banda criada pelo músico em 2006, Leite adapta sete das dez composições que integram o cultuado Coisas (1965), obra-prima do também arranjador, compositor, maestro e multi-instrumentista pernambucano Moacir Santos, uma das principais referências criativas do artista soteropolitano. Leia o texto completo.


#25. Josyara
ÀdeusdarÁ (2022, DeckDisc)

A primeira coisa que ouvimos em ÀdeusdarÁ é o som da percussão. Em seguida, a voz forte de Josyara ganha forma em meio a efeitos e bases eletroacústicas, estrutura que se completa pela pela poesia contestadora e participação de Margareth Menezes. “Quem sustentará o meu sofrimento? / Quem se importará com a minha dor? / Quem suportará quem eu sou?“, questiona a artista de Juazeiro. Com pouco mais de três minutos de duração, a introdutória ladoAlado sintetiza de forma representativa tudo aquilo que a compositora baiana busca desenvolver no mais recente trabalho em carreira solo. Na contramão do repertório entregue no disco anterior, o reducionista Mansa Fúria (2018), Josyara se concentra na formação de um material marcado pela força dos elementos. São batidas, arranjos e vozes sempre destacadas, estrutura que fortalece cada mínimo fragmento poético detalhado pela artista ao longo da obra. A própria escolha dos temas, conceitualmente ancorados em questões políticas e reflexões sobre a sociedade brasileira, contribui ainda mais para esse resultado. Instantes em que a artista potencializa tudo aquilo que tem sido testado e incorporado criativamente em estúdio desde os primeiros registros autorais. Leia o texto completo.


#24. gorduratrans
Zera (2022, Balaclava Records)

Os minutos iniciais de Crista, música de abertura de Zera, são essenciais para entender a direção seguida pelos integrantes da gorduratrans no terceiro e mais recente trabalho de estúdio da banda fluminense. Atravessando a base de sintetizadores enevoados, como um tecido fino, quase transparente, o ouvinte é prontamente confrontado com uma sequência de guitarras, batidas e blocos colossais de ruídos. Uma contrastante combinação de elementos que preserva, perverte e amplia tudo aquilo que Felipe Aguiar (guitarra e voz) e Luiz Felipe Marinho (bateria e voz) haviam testado nos dois primeiros registros de inéditas, Repertório Infindável de Dolorosas Piadas (2015) e Paroxismos (2017). Dividido entre momentos de calmaria e caos, o registro que conta com produção do pernambucano Roberto Kramer (RØKR) e o músico paulistano Fernando Dotta (Single Parents), faz de cada composição um objeto precioso. Passada a labiríntica canção de abertura, Enterro dos Ossos, já conhecida criação da dupla, evidencia o que há de mais intenso no som produzido pela banda. Enquanto os versos tratam sobre a degradação dos elementos (“Destroços jogados no mar / O peso, o pernoite / Tudo acaba uma hora“), camadas de guitarras encolhem e crescem a todo instante, sempre de maneira intensa e imprevisível. Leia o texto completo.


#23. N.I.N.A
Pele (2022, Independente)

Mesmo em um curto intervalo de atuação, Anna Ruth Ferreira, a N.I.N.A, acabou se transformando em um dos nomes mais importantes do grime/drill produzido no Brasil. Da boa repercussão em torno das próprias composições, caso de A Bruta, A Braba, A Forte, música incorporada como assinatura pela compositora fluminense, passando pelo diálogo com diferentes colaboradores, como SD9, no excelente 40°.40 (2020), sobram momentos em que a rapper assume uma posição de destaque em relação a outros nomes do meio. Talvez por isso, seja tão estranho pensar em Pele (2022) como o primeiro trabalho de estúdio da artista. Na contramão de outros artistas do gênero, ainda em busca da própria identidade, N.I.N.A se apresenta ao público com uma obra madura e conceitualmente homogênea. São canções que orbitam um universo bastante particular, fazendo das emoções e evidente vulnerabilidade expressa nos versos um importante componente de aproximação entre as faixas. “Tentando não brigar comigo / Entender o perigo / Do peso que é as magoas que eu carrego / E hoje fazem meu abrigo“, reflete logo nos minutos iniciais, em Anna, música que sintetiza parte dos sentimentos explorados pela rapper durante toda a execução do trabalho. Leia o texto completo.


#22. Gabriel Ventura
Tarde (2022, Balaclava Records)

Tem disco que quando bate, faz um estrago danado. Estreia de Gabriel Ventura em carreira solo, Tarde é uma dessas obras. Produto da parceria entre o ex-integrante da Ventre e o produtor Patrick Laplan (Los Hermanos, Duda Beat), o trabalho de nove faixas começa manso, quase misterioso, porém, sustenta na permanente colisão de formas instrumentais, ruídos e atravessamentos o estímulo para um registro que se revela maior a cada nova audição. São canções que parecem escapar da mente do artista carioca, como inquietações materializadas em músicas dotadas de linguagem universal. “O fracasso não me amedronta / Tenho uma tonelada de remorço em mim e vou me derramar aqui, vem ver“, anuncia logo nos primeiros minutos da obra, em O Teste, música que sintetiza de maneira eficiente tudo aquilo que Ventura busca desenvolver ao longo do trabalho. São fragmentos de vozes que se levantam como blocos imensos de concreto, estrutura que se completa pelo desenho torto das guitarras e uso calculado das batidas. É como uma extensão natural de tudo aquilo que o guitarrista havia testado com integrante da Ventre, trio carioca completo por Larissa Conforto e Hugo Noguchi, porém, partindo de uma abordagem totalmente imprevisível, proposta que se reflete até a faixa de encerramento do álbum, Vontade. Leia o texto completo.


#21. Baco Exu Do Blues
QVVJFA? (2022, 999)

Poucas vezes antes Baco Exu do Blues pareceu tão exposto quanto nas canções de QVVJFA. Sequência ao material entregue pelo rapper no caseiro Não Tem Bacanal na Quarentena (2020), registro produzido e lançado no início do período de isolamento social, o trabalho de essência agridoce se divide entre momentos de maior celebração e versos consumidos pela dor. São composições ancoradas em relacionamentos fracassados, romances perfumados pelo sexo, medos e versos sempre intimistas, conceito que tem sido explorado desde o introdutório Esú (2017), mas que ganha novo resultado à medida que o artista baiano utiliza das próprias angústias como um importante componente de diálogo com o ouvinte. “Usamos drogas pra esconder nossa dor / Diamantes nas correntes pra ofuscar nossa dor / Cravejamos o sorriso, não vão ver nossa dor / Pago dez mil nesse tênis, tô pisando na dor“, detalha emAutoestima, música que sintetiza a fragilidade emocional explícita durante toda a execução da obra. É como uma fuga do repertório entregue durante o lançamento de Bluesman (2018), trabalho de essência grandiosa em que amarra conquistas pessoais e exaltações ao povo preto de forma sempre provocativa. Instantes em que o rapper preserva traços significativos da própria identidade criativa, porém, desaba emocionalmente. Leia o texto completo.


#20. Macaco Bong
Live Garage (2022, ForMusic Records)

Na segunda metade dos anos 2000, a Macaco Bong se transformou em uma presença garantida e bastante celebrada em alguns dos principais festivais de música independente do Brasil. E não poderia ser diferente. Em um cenário que revelou nomes como Móveis Coloniais de Acaju, Vanguart e Mallu Magalhães, o grupo cuiabano encabeçado pelo guitarrista Bruno Kayapy se destacava pela potência das apresentações ao vivo que pareciam ampliar significativamente o material desenvolvido em estúdio. Eram performances sempre catárticas e imprevisíveis, proposta que viria a orientar os espetáculos da banda pelos próximos anos. Vem justamente desse olhar e ouvido atento para as próprias apresentações o estímulo para o material entregue em Live Garage. Lançado de surpresa, o registro de cinco faixas busca transportar para dentro de estúdio a mesma intensidade explícita nas performances do grupo completo pelos músicos Igor Carvalho (baixo) e Marcus Fachini (bateria). E isso fica bastante evidente na introdutória Carranca. São pouco mais de sete minutos de batidas espancadas, guitarras altamente ruidosas e uma linha de baixo que cobre toda a superfície da canção, indicando a potência e completa entrega do trio. Leia o texto completo.


#19. Deize Tigrona
Foi Eu Que Fiz (2022, Batekoo)

Quatorze anos se passaram desde que Deize Tigrona deu vida ao último trabalho de estúdio, Garota Chapa Quente (2008). De lá pra cá, a artista que ganhou o mundo quando Injeção, parceria com DJ Marlboro, foi sampleada por M.I.A. em Bucky Done Gun, passou por altos e baixos. Salve colaborações esporádicas com nomes como Jaloo e Badsista, a moradora da Cidade de Deus, comunidade do Rio de Janeiro, teve que cancelar uma série de apresentações no exterior para se dedicar à família, tratar da própria saúde mental e passou a tirar seu sustento como gari. Entretanto, Deize nunca parou de compor. Vem justamente desse esforço em resgatar algumas das músicas compostas nesse intervalo de mais de uma década o estímulo para o repertório de Foi Eu Que Fiz. Ponto de partida para uma nova fase na carreira da artista, o trabalho que conta com direção artística de Mauricio Sacramento mostra a compositora carioca em sua melhor forma. São canções que preservam o lirismo explícito dos primeiros registros autorais, estreitam a relação com novos colaboradores e arrastam o ouvinte para as pistas, porém, sustentam na construção dos versos uma vulnerabilidade poucas vezes antes explícita na obra de Tigrona. Leia o texto completo.


#18. Ratos de Porão
Necropolítica (2022, Independente)

A última vez que os integrantes da Ratos de Porão entraram em estúdio para dar vida a um novo registro de inéditas, Século Sinistro (2014), o cenário político brasileiro viva um período de forte instabilidade. Às vésperas da reeleição de Dilma Rousseff, um suposto sentimento de indignação tomava conta das ruas e atiçava a população com suas camisas da CBF. Ao mesmo tempo em que estimulava o ouvinte a avançar (“Grite com ódio e vai“), o vocalista João Gordo alertava: “Não seja subjugado / Por essa corja fascista“. Interessante perceber em Necropolítica, primeiro trabalho da banda paulistana em oito anos, uma extensão natural dos acontecimentos que mudaram os rumos do país há quase uma década. Inaugurado pelo som falho de uma respiração dependente de aparelhos, o trabalho que ainda conta com a presença dos músicos Jão (guitarra), Juninho (baixo) e Boka (bateria),funciona como um registro quase documental da caótica situação política e social do Brasil. Composições que partem do período pandêmico para discutir o avanço da extrema direita no país, o aumento da desigualdade e o nefasto governo exercido pelo presidente Jair Bolsonaro. “Genocida depravado / Ditador que come gente / Um perigo eminente / Mentiroso imoral“, despeja o vocalista enquanto arma o terreno para o refrão que, mais uma vez, funciona como um alerta para tudo aquilo que o artista havia apontado anos antes, nas canções de Século Sinistro. Leia o texto completo.


#17. Pelados
Foi Mal (2022, Matraca Records)

Mais recente criação do grupo paulistano Pelados, Foi Mal é um desses discos que fazem um verdadeiro estrago na sua cabeça. Torto e imprevisível, como tudo aquilo que os parceiros Lauiz (programações e sintetizadores), Vicente Tassara (guitarra), Helena Cruz (baixo e vocal), Theo Ceccato (bateria) e Manu Julian (vocal) têm desenvolvido desde a segunda metade da década passada, o registro transita por entre estilos em uma delirante combinação de elementos. Canções que começam pequenas, crescem aos poucos e conduzem a experiência do ouvinte para lugares completamente inimagináveis. Embora caótico, sobrevive no repertório montado pela banda um curioso senso de aproximação entre as faixas. Concebido durante o período de isolamento social, o registro sustenta na construção dos versos um fino toque de melancolia. São composições que tratam da sensação de deslocamento, medos e angústias compartilhadas pelos próprios artistas, como um acumulo das experiências vividas durante a pandemia. “Mesmas pessoas / Mesmas conversas / Mesmas fofocas … E você enjoou de mim“, desaba a letra de mesmasmesmasmesmas, música que sintetiza parte da poesia entristecida que costura o trabalho. Leia o texto completo.


#16. Jair Naves
Ofuscante a Beleza Que Eu Vejo (2022, Independente)

A raiva sempre foi encarada como um componente substancial na obra de Jair Naves. Está na crueza dos versos que marcam as criações do cantor e compositor mineiro em carreira solo ou mesmo nas canções do artista como principal articulador da Ludovic, vide o repertório entregue em álbuns como Servil (2004) e Idioma Morto (2006). Porém, ao mergulhar nas composições de Ofuscante a Beleza Que Eu Vejo, quarto e mais recente registro autoral do músico, essa mesma raiva, tão presente, assume novos contornos, cresce de maneira descomunal e se projeta em uma abordagem claramente direcionada. “Deixa a televisão no mudo / Eu não suporto a voz desse demente / Deixa a televisão no mudo / Quem fez desse cretino um presidente?“, dispara em De Arder, terceira faixa do disco e uma representação clara de parte dos temas que busca desenvolver ao longo da obra. São canções que direcionam seu ódio para o nocivo governo de Jair Bolsonaro, discutem o avanço da extrema-direita no país e crescem como um acumulo natural das inquietações vividas nos últimos anos por qualquer indivíduo com um mínimo de lucidez. Instantes em que o Naves vai da busca por compreensão sobre aqueles que ajudaram a eleger Bolsonaro, em Morre Um Apaziguador/Nasce Um Saqueador (“Mostre algum arrependimento / Qualquer sinal de desilusão“) à raiva contra os que hoje tentam se desvincular, ponto de partida para a construção dos versos deO Dialeto(“Nem tenta tirar o corpo fora agora, você e o seus / Nem tenta tirar o corpo fora“). Leia o texto completo.


#15. Mari Herzer
Cheia (2022, Maba Rec)

Entre ruídos, quebras e atravessamentos totalmente imprevisíveis, Mari Herzer convida o ouvinte a se perder nas canções de Cheia. Verdadeiro labirinto sensorial, o trabalho funciona como um passeio torto pelas ruas acinzentadas da cidade de São Paulo. São texturas sintéticas e sobreposições sempre inexatas, conceito que dialoga com a própria imagem de capa do disco, uma criação de Carlos Issa e Estúdio Margem, mas que ganha forma e cresce a cada novo movimento da artista que também atua como integrante da Teto Preto e costuma se apresentar nas sempre disputadas edições da Mamba Negra. Entretanto, muito antes de arrastar o ouvinte para dentro desse ambiente caótico, Herzer, que assina a composição, produção e mixagem do registro, abre o álbum de maneira misteriosa. Em um intervalo de quatro minutos, Eros apresenta parte dos elementos que serão incorporados pela artista ao longo da obra, como as texturas submersas e costuras pouco usuais, porém, de forma deliciosamente contida, quase contemplativa. Um lento desvendar de informações, estrutura que assume novos rumos com a chegada da crescente Prólogo, parceria com M é d i o, e um precioso exercício de transição para o restante do disco. Leia o texto completo.


#14. Rico Dalasam
Fim Das Tentativas (2022, Independente)

Rico Dalasam vive hoje uma de suas melhores fases. Entre processos de cura e libertação sentimental, o rapper paulistano tem se aprofundado cada vez mais na construção de composições marcadas pela visceralidade dos temas e forte aspecto confessional dado aos versos. Um doloroso, porém, necessário exercício de exposição emocional que alcançou sua melhor forma durante a produção de Dolores Dala Guardião do Alívio (2021), mas que continua a reverberar de forma bastante sensível em cada mínimo fragmento poético de Fim Das Tentativas, mais recente lançamento do artista. Inaugurado pelos sentimentos inquietantes que dominam os versos da agridoce De Longe – “Me tornei calmo, assim como os vendavais são, de longe” –, o trabalho que conta com produção de Dinho Souza, parceiro de longa data do artista, diz a que veio logo nos minutos iniciais. É como um delicado exercício apresentação. Um texto manifesto que destaca o peso da memória, recordações de um passado ainda recente e a necessidade de seguir em frente, proposta que tem sido explorado pelo rapper desde o lançamento do trabalho anterior, mas que aponta para novas direções, diferentes temáticas e soluções. Leia o texto completo.


#13. Terno Rei
Gêmeos (2022, Balaclava Records)

Longe do repertório enevoado que os integrantes da Terno Rei haviam testado no introdutório Vigília (2014), Violeta (2019), terceiro álbum de estúdio do grupo paulistano, não apenas serviu para estreitar a relação do quarteto com a música pop, conceito iniciado durante a produção de Essa Noite Bateu Com Um Sonho (2016), como aproximou o som produzido pela banda de uma parcela ainda maior do público. Utilizando de uma linguagem deliciosamente acessível e nostálgica, Ale Sater (voz e baixo), Bruno Paschoal (guitarra), Greg Vinha (guitarra) e Luis Cardoso (bateria) fizeram dos próprios sentimentos um importante componente de diálogo com o ouvinte, estímulo para a construção de faixas como Solidão de Volta e Yoko. É partindo desse mesmo direcionamento estético que o grupo abre passagem para o quarto registro de inéditas da carreira. Com o título representativo de Gêmeos, o álbum que mais uma vez conta com produção de Amadeus De Marchi, Gustavo Schirmer e Janluska, utiliza de uma série de conceitos bastante característicos da banda, como a forte vulnerabilidade dos versos, mas que se permite provar de novas experiências, medos e inquietações. São canções que tratam sobre as angústias vividas durante o período de isolamento social, mesmo pontuadas por momentos de maior otimismo e celebração. Leia o texto completo.


#12. Dingo
A Vida É Uma Granada (2022, Rockambole)

É sempre muito reconfortante ser apresentado a um novo álbum dos gaúchos da Dingo, ex-Dingo Bells. Mesmo que muitas das canções girem em torno de um mesmo universo temático, se aprofundando nas dores e prazeres da vida adulta, tudo é tratado com tamanho cuidado que é difícil não se deixar seduzir pelo som produzido por Rodrigo Fischmann (voz e bateria), Felipe Kautz (voz e baixo), Fabricio Gambogi (voz e guitarra) e Diogo Brochmann (voz e guitarra). Terceiro e mais recente trabalho de estúdio produzido pela banda de Porto Alegre, A Vida É Uma Granada é um bom exemplo disso. Do refinamento dado aos vocais, passando pelo tratamento que marca a construção dos arranjos, melodias e versos, cada mínimo fragmento do trabalho parece cuidadosamente pensado pelos integrantes da banda. É como um acumulo natural de mais de duas décadas de carreira, mas que em nenhum momento perde o frescor e precioso senso de atualização. A própria música de abertura, escolhida para dar nome ao disco, funciona como uma boa representação desse resultado. Instantes em que o quarteto gaúcho parte do cenário de pandemia para mergulhar nas pequenas incertezas da vida. “Mesmo se eu tivesse o dom da previsão / Não poderia ler na sua mão / Que a vida é uma granada / E ainda não vimos nada“, reflete. Leia o texto completo.


#11. Bruno Morais
Poder Supremo (2022, Sony Music)

Cantor, compositor e produtor nascido na cidade de Londrina, região Norte do Paraná, Bruno Morais sempre estabeleceu no forte aspecto colaborativo um estimulo para a própria obra. E isso fica bastante evidente quando voltamos os ouvidos para o repertório de A Vontade Superstar (2009), último trabalho em carreira solo e um campo aberto ao diálogo com diferentes nomes da cena brasileira, como Marcelo Jeneci, Romulo Fróes e Guilherme Kastrup, com quem divide a produção do material. Entretanto, mesmo imerso nesse cenário marcado pelo uso de interferências externas, interessante perceber em Poder Supremo, novo registro de inéditas, um exercício em que transcende os próprios limites. Primeiro trabalho de estúdio em mais de uma década, o registro que levou cinco anos até ser finalizado funciona como a passagem para um território mágico. Utilizando da colorida imagem de capa, uma criação do ilustrador paulistano Zansky, o músico paranaense convida o ouvinte a se perder em um cenário onde sonho e realidade se confundem a todo instante. São composições que utilizam de questões existenciais, experiências cósmicas e reflexões que partem das memórias compartilhadas pelo próprio artista, porém, completas pela interferência de nomes importantes como o coletivo Bixiga 70, as cantoras Juçara Marçal e Anelis Assumpção, a atriz Julia Lemmertz e os coprodutores Guilherme Kastrup e Maurício Fleury. Leia o texto completo.


#10. Alaíde Costa
O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim (2022, Samba Rock)

Obra de sentimentos calcificados e memórias assentadas como sedimentos, O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim contrasta a dureza dos temas com a maciez dada aos arranjos e vozes. Mais recente trabalho da cantora e compositora Alaíde Costa, de 86 anos, o registro que conta com produção dividida entre Emicida e Marcus Preto captura a atenção do ouvinte logo nos primeiros minutos, emTurmalina Negra, criação de Céu e Diogo Poças. São versos consumidos pelo peso da passagem do tempo e recordações empoeiradas, como um acumulo de tudo aquilo que a artista carioca experienciou em mais de seis décadas de carreira. “E eu serei quem sou / Pedra tão rara / Gema mineral / Segura, intacta / Ao assistir o vendaval das movimentações“, detalha em meio a orquestrações sublimes, sempre reducionistas. Uma vez imersa nesse cenário onde passado e presente se confundem a todo instante, Alaíde, sempre acompanhada pela direção musical de Pupillo Oliveira (Nação Zumbi, Gal Costa), se divide entre o olhar saudosista e a necessidade de seguir em frente. “Eu tentei explicar meu destino / De sempre fugir / Fui viver / Fui saber / O que o mundo queria de mim“, confessa na delicada Nenhuma Ilusão, samba-canção que funciona como uma síntese poética de tudo aquilo que a artista busca desenvolver ao longo da obra. É como um delicado exercício de exposição sentimental. Um misto de dor, resgate e busca por reconciliação. Leia o texto completo.


#9. Russo Passapusso, Antonio Carlos & Jocafi
Alto da Maravilha (2022, Máquina de Louco)

Alto da Maravilha é uma verdadeira celebração à música baiana. Produto da parceria entre o cantor e compositor Russo Passapusso, um dos integrantes do BaianaSystem, com a dupla Antonio Carlos & Jocafi, dois importantes representantes da cena brasileira na década de 1970, o trabalho marcado pela colorida mistura de ritmos costura passado e presente em uma abordagem que concentra o que há de melhor na obra de cada colaborador. São canções que parecem dançar pelo tempo, sempre divididas entre a euforia festiva e lirismo contestador que concede movimento e grandeza ao repertório. Conceitualmente dividido em dois blocos bastante específicos, o trabalho que conta com produção assinada em conjunto por Curumin, Zé Nigro e Lucas Martins, sustenta na porção inicial, definida pelo grupo como “o pé“, um precioso componente de estímulo e imediato diálogo com o ouvinte. A própria faixa de abertura, Aperta o Pé, funciona como uma boa representação de tudo aquilo que o trio busca desenvolver. Da construção das batidas, ao coro de vozes e arranjos ensolarados, tudo parece pensado para capturar a atenção do público, convidado a se perder em um labirinto de formas instrumentais. Leia o texto completo.


#8. Anelis Assumpção
Sal (2022, Taurina)

Entre amigos imaginários e elementos astrológicos, Anelis Assumpção sempre encarou a própria obra como um espaço aberto à colaboração. Entretanto, ao mergulhar no fino repertório de Sal, mais recente empreitada criativa da artista paulistana em carreira solo, esse permanente atravessamento de informações e diálogo com diferentes parceiros ganha novo significado. Embora carregue a assinatura da cantora, sobrevive na construção das faixas a interferência direta de um seleto time de compositoras, instrumentistas, produtoras e vozes que trazem novos temperos e sabores ao trabalho de Assumpção. Não por acaso, Sal talvez seja o registro mais plural do repertório da artista paulistana. Com Uva Niágara como música de abertura, Assumpção se espalha em um misto de canto e rima, transforma o próprio corpo nas ruas de São Paulo e transita por entre estilos enquanto estreita relações com a baiana Larissa Luz. É como um ensaio para o chega logo em sequência em uma das principais composições do disco, Benta. Completa pela participação de Luedji Luna, a faixa composta em colaboração com Céu e Thalma de Freitas, parceiras no Negresko Sis, destaca a sensibilidade dos versos e temática da hereditariedade que ecoa em parte expressiva do material. “Saudade é amor que fica“, detalha em meio a arranjos ensolarados. Leia o texto completo.


#7. Bruno Berle
No Reino Dos Afetos (2022, Far Out Recordings)

No Reino dos Afetos é um produto do acaso. Inicialmente pensado como uma combinação de faixas que viriam em sequência ao material apresentado em Lembrança & Viva (2019), início da parceria entre o cantor e compositor alagoano Bruno Berle com o produtor Leonardo Costa Acioli, o Batata Boy, o registro foi pouco a pouco ampliado com o inevitável avanço da pandemia de Covid-19. Isolados e imersos na escuta de antigos discos de vinil, os dois artistas se concentraram na formação de um repertório marcado pela sobreposição de ideias, retalhos de vozes, ruídos e captações caseiras. O resultado desse processo está na entrega de um registro marcado pela singularidade dos elementos e sonoridade granulada, mas que encanta pela profunda sensibilidade dos temas. “Felicidade é eu e você / No mundo / E mais cantigas de paz / Palavras de amor / Reciprocidade“, detalha na introdutória Até Meu Violão, música que sintetiza parte das experiências sentimentais e conceitos incorporados por Berle ao longo da obra. Frações poéticas que se revelam ao público em pequenas doses, sempre adornadas por microfonias e incontáveis atravessamentos rudimentar que reforçam a atmosfera particular do trabalho. Leia o texto completo.


#6. Maglore
V (2022, Difusa Fronteira)

A base ensolarada que contrasta com a sobriedade dos versos, arranjos de metais que evocam as grandes aberturas dos filmes de James Bond, a ausência de certeza que serve de passagem para um mundo de novas descobertas. Bastam os minutos iniciais de A Vida É Uma Aventura, composição de abertura em V, para que o ouvinte seja prontamente transportado para dentro do quinto e mais recente trabalho de estúdio da banda baiana Maglore. Instantes em que o grupo formado por Teago Oliveira (voz e guitarra), Lelo Brandão (guitarra, sintetizadores), Felipe Dieder (bateria) e Lucas Gonçalves (baixo) parte das inquietações experienciadas durante o período pandêmico para dialogar com o ouvinte. “A gente envelheceu, a gente superou / Cada momento em que a vida foi mais dura / Para se escrever em um final que não chegou / A vida é uma aventura“, anuncia Oliveira, apontando a direção seguida pelo quarteto ao longo do disco que conta com produção do sempre minucioso Leonardo Marques (Jennifer Souza, Isabel Lenza). Partindo desse cenário marcado pelas incertezas e sentimentos universais, cada composição assume uma função específica. São nostálgicas canções de amor, momentos de maior vulnerabilidade e crises existenciais, mas que em nenhum momento perdem o contato com a realidade. Leia o texto completo.


#5. Criolo
Sobre Viver (2022, Oloko Records)

Amor e ódio sempre foram encarados como componentes essenciais dentro da obra de Criolo, porém, nunca de maneira tão explícita quanto nas composições de Sobre Viver. Primeiro trabalho de estúdio do artista paulistano desde o flerte com o samba, em Espiral de Ilusão (2017), o novo álbum estabelece na contrastante combinação entre esses dois elementos um estímulo natural para a construção dos versos. Canções que partem das angústias e experiências pessoais vividas pelo rapper, como a recente morte da própria irmã, vítima de Covid-19, para mergulhar em um ambiente consumido pela desigualdade, repressão e momentos de maior desespero que caracterizam o atual cenário brasileiro. Com base nessa estrutura, Criolo vai da calmaria ao caos em um ziguezaguear de sensações que traz de volta o mesmo dinamismo expresso nas canções de Nó Na Orelha (2011) e Convoque Seu Buda (2014). Composições que mudam de direção a todo instante, sempre imprevisíveis, produto da boa relação em estúdio com André Laudz e Zé Gonzales, do Tropkillaz, responsáveis pela produção do material. A própria música de abertura do álbum, Diário do Kaos, com suas oscilações e interpretação potente do artista, funciona como uma boa representação de tudo aquilo que o rapper busca desenvolver ao longo da obra. Leia o texto completo.


#4. Tim Bernardes
Mil Coisas Invisíveis (2022, Coala Records)

Ouvir as canções de Mil Coisas Invisíveis, segundo álbum de Tim Bernardes em carreira solo, é como folhear as páginas de um livro. São versos autobiográficos, por vezes descritivos, longos e difíceis, como se estruturados para serem desvendados pelo ouvinte. O próprio cantor e compositor paulistano me confidenciou em entrevista que muito do processo de criação da material se assemelhou ao lançamento de um livro. Fragmentos textuais que parecem dançar pelo tempo, como em uma antologia de reminiscências empoeiradas e memórias de um passado ainda recente, remontando experiências sentimentais vividas pelo artista desde o lançamento do disco anterior, Recomeçar (2017). Sobrevive justamente nesse forte aspecto da temporalidade, uso de questões existenciais e reflexões sobre a inevitabilidade da passagem do tempo um estímulo natural para o fortalecimento da obra. É como se o músico seguisse exatamente de onde parou no registro anterior, porém, livre da linearidade expressa nas canções de Recomeçare do próprio Atrás / Além (2019), último álbum de estúdio com os parceiros da banda O Terno. “Nascer outra vez bem no meio da vida“, detalha na introdutória Nascer, Viver, Morrer, composição que sintetiza parte dos temas e inquietações exploradas pelo artista ao longo do trabalho. Leia o texto completo.


#3. Fernando Catatau
Fernando Catatau (2022, Independente)

A imagem refletida em meio a escombros que estampa a fotografia de capa do primeiro álbum em carreira solo de Fernando Catatau diz muito sobre a proposta do cantor e compositor cearense. Imerso em meio a fragmentos emocionais, entulhos e memórias empoeiradas, o músico, também vocalista e líder da banda Cidadão Instigado, busca se restabelecer sentimentalmente. São canções que parecem dançar pelo tempo, esbarrando em recordações melancólicas e personagens anuviados. Um misto de passado e presente que se confunde a todo instante, como um passeio pela mente atormentada do próprio do artista de Fortaleza. “A nostalgia criou cascas em meu corpo / E com o tempo elas caem no chão / Me machucando pouco a pouco“, detalha Catatau em Nostalgia. Localizada próxima ao encerramento do disco, a composição de acabamento vagaroso funciona como uma representação de tudo aquilo que o músico que já colaborou com nomes como Arnaldo Antunes, Céu e Los Hermanos busca desenvolver ao longo da obra. É como um permanente olhar para o passado, ainda que a necessidade de seguir em frente aponte a direção seguida durante toda a execução da obra. “Eu acho que virei de costas para mim / E me entreguei“, completa. Leia o texto completo.


#2. Tulipa Ruiz
Habilidades Extraordinárias (2022, Brocal)

Em um cenário de algoritmos ditosos, incontáveis colaborações para furar as bolhas das plataformas de streaming e lançamentos semanais que tão rápido surgem logo desaparecem, Tulipa Ruiz segue em uma medida própria de tempo. Sete anos após o lançamento do último registro de inéditas, o acessível Dancê (2015), a cantora e compositora paulista utiliza de uma abordagem parcialmente distinta nas canções de Habilidades Extraordinárias. Da escolha pela captação analógica, registrada em fita ao invés de computadores, passando pela construção dos versos, tudo gira em torno de um universo particular. Escolhida para inaugurar o trabalho, Samaúma, com sua poesia enigmática, funciona como uma delicada representação de tudo aquilo que Tulipa e o irmão, o produtor Gustavo Ruiz, buscam desenvolver ao longo da obra. “Os mistérios guardo na semelhança / Agrupo por cores / Em prateleiras“, brinca em um minucioso jogo de palavras que faz lembrar de Banho, musica produzida especialmente para Elza Soares no álbum Deus é Mulher (2018). São fragmentos poéticos que surgem e desaparecem durante toda a execução do material, tornando a experiência de ouvir o registro totalmente imprevisível e inquietante. Leia o texto completo.


#1. Xenia França
Em Nome Da Estrela (2022, Independente)

Passado, presente e futuro se encontram nas canções de Em Nome da Estrela. Mais recente trabalho de inéditas de Xênia França, o sucessor do introdutório Xenia (2017), lançado há cinco anos, traz de volta uma série de conceitos marcados pelas vivências da cantora e compositora baiana como mulher negra, porém, se permite provar de diferentes possibilidades em estúdio e apontar para novas direções criativas. São composições marcadas pela temática da ancestralidade, mas que em nenhum momento deixam de trilhar um caminho cintilante, abrindo passagem para o que ainda está por vir. Perfeita representação desse resultado acontece na sequência de abertura do trabalho. Enquanto Renascer, revelada há poucas semanas, parte de uma abordagem existencialista e totalmente particular (“Rezo preces na solidão / Pra seguir o meu coração / E deixar curar / Me encontrar no fundo da alma“), com a chega de Interstelar, logo em sequência, a artista amplia consideravelmente os limites da própria obra e investe em um repertório marcado pelo aspecto transcendental. “A chave sagrada / O evento desdobra o tempo interstelar / O salto do quinto elemento / Viaja no prisma do olho solar“, detalha França. Leia o texto completo.


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Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.